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Dois ícones de Natal. (Foto via Midwestern Marx)

Neste Natal, o cristianismo radical e o marxismo podem nos inspirar a construir um mundo melhor

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Tradução
Cauê Seignemartin Ameni

A compreensão convencional do marxismo como antirreligioso está errada. Como argumentou o filósofo Alasdair MacIntyre, o cristianismo e o marxismo inspiraram na humanidade um senso radical de esperança para construir um mundo mais justo.

“O sofrimento religioso é, ao mesmo tempo, a expressão do sofrimento real e o protesto contra o sofrimento real. A religião é o suspiro da criatura oprimida, o coração de um mundo sem coração e a alma de condições desalmadas. É o ópio do povo. A abolição da religião como felicidade ilusória do povo é a exigência de sua felicidade real. Exortá-los a desistir de suas ilusões sobre sua condição é exortá-los a desistir de uma condição que requer ilusões. A crítica da religião é, portanto, em embrião, a crítica desse vale de lágrimas do qual a religião é a auréola.”

— Karl Marx, 1843


Que Karl Marx era ateu é bem conhecido por seus amigos e inimigos. Mesmo pessoas estranhas como eu, que não passam os dias ansiando impacientemente pelo próximo livro de David Harvey sobre os Grundrisse, podem recitar a famosa citação sobre religião de Marx como o “ópio do povo”. E, na prática, muitas figuras e movimentos marxistas, de Vladimir Lenin ao socialismo francês, tinham uma visão obscura das tradições religiosas. Frequentemente com grande justificativa, os marxistas viam instituições como a Igreja Católica como bastiões da reação que, na melhor das hipóteses, se acomodaram às concepções modernas de igualdade e liberdade.

Mas a relação histórica do marxismo com a religião é muito mais complicada. As esquerdas latino-americanas infundiram a Igreja Católica com a Teologia da Libertação, e o teólogo cristão Paul Tillich exortou a humanidade a ter a coragem de trabalhar em direção ao socialismo. Nos Estados Unidos, os principais quadros da esquerda negra, de Martin Luther King Jr a Cornel West, se inspiraram no legado do socialismo e da Bíblia. E intelectuais de esquerda contemporâneos como Terry Eagleton e a reverenda Angela Cowser continuam nessa tradição de diálogo e crítica.

MacIntyre e Marx

Alasdair MacIntyre, o eminente filósofo escocês-americano, é uma figura fascinante no nexo marxismo-cristianismo. Extremamente importante na direita anglo-americana, MacIntyre influenciou inúmeros intelectuais “pós-liberais” e socialmente conservadores atraídos por sua crítica sombria e até apocalíptica da modernidade liberal (embora a maioria careça de sua sofisticação e desdém pelas injustiças do capitalismo). Para MacIntyre, a sociedade moderna transformou o certo e o errado em questões de gosto pessoal, deixando a humanidade à deriva, niilista e desprovida de qualquer noção de quais fins valem a pena perseguir na vida. Sem um senso teleológico de quais fins vale a pena perseguir, muitos acabam cedendo ao consumismo ou se sentem atraídos por formas destrutivas da “vontade de poder” nietzschiana.

Mas muito antes de fornecer munição intelectual para a cruzada da revista religiosa conservadora First Things contra os perigos existenciais da homossexualidade, MacIntyre era um pensador marxista original e interessante. Marxismo e Cristianismo, escrito quando MacIntyre tinha apenas 23 anos, é uma coisa rara: um livro de primeira que merece ser um clássico menor, mas que foi tão ofuscado pelas evoluções políticas posteriores do autor que permanece lamentavelmente pouco lido.

Alasdair MacIntyre na conferência da International Society for MacIntyrean Inquiry realizada no University College Dublin em 2009. (Sean O’Connor / Wikimedia Commons)

A controversa tese de MacIntyre é que o marxismo, longe de ser hostil ao cristianismo, de fato “humanizou certas crenças cristãs de maneira a apresentar um julgamento cristão secularizado, em vez da adaptação cristã ao presente secular”. A esse respeito, MacIntyre leva a sério a afirmação semelhante de seu grande oponente, Friedrich Nietzsche, de que o socialismo tem suas raízes morais no igualitarismo e no humanismo cristãos. Mas MacIntyre vai além ao localizar ideias cristãs secularizadas diretamente na obra de Marx.

Marx começou sua carreira como um hegeliano – um devoto do grande filósofo alemão Georg Wilhelm Friedrich Hegel – e, como enfatiza MacIntyre, a inspiração de Marx estava profundamente interessada no cristianismo. Hegel via a Bíblia expressando de forma simbólica muitos dos principais temas de sua filosofia. Por exemplo, entender a humanidade comendo o fruto da árvore do conhecimento como um ato puramente pecaminoso erra o ponto. Em vez de condenar Adão e Eva com fogo e enxofre, Deus observa pensativo que o homem se tornou semelhante a ele no conhecimento do bem e do mal e, consequentemente, não podia mais residir na feliz ignorância do Éden. A humanidade agora tinha que desempenhar um papel ativo no drama do mundo.

“MacIntyre explica que Marx pegou muitas das ideias de Hegel, mas as transformou em uma direção mais materialista e radical.”

Isso trouxe consigo a possibilidade de nossa liberdade e prosperidade, mas também o risco de nossa alienação e estranhamento da natureza e da necessidade. Figuras religiosas como Jesus, o Deus-homem que reconciliou liberdade e necessidade em sua pessoa, expressaram simbolicamente a possibilidade de resolver essa alienação. Mas símbolos e figuras religiosas podiam rapidamente, e sem pensar, se tornar ídolos que eram adorados por si mesmos, e não como expressões emblemáticas da verdade mais profunda.

MacIntyre explica que Marx pegou muitas das ideias de Hegel, mas as transformou em uma direção mais materialista e radical. Na Filosofia do direito, Hegel descreveu o Estado monárquico prussiano como a forma social mais elevada já alcançada, e vários “hegelianos de direita” defenderam o papel do cristianismo em reconciliar as massas com o status quo. Para Marx, essa leitura conservadora passa um pano para a escancarada injustiça da Prússia autocrática: o uso em massa da violência contrarrevolucionária, a censura onipresente, a exploração generalizada e o empobrecimento das classes trabalhadoras.

Mas Marx nunca foi tão grosseiro a ponto de simplesmente condenar a religião. A religião deu aos seres humanos um senso de propósito em meio à privação material e à privação de direitos políticos, e persistiria até que as necessidades básicas das pessoas fossem finalmente atendidas. A alternativa era aceitar que grande parte da humanidade viveria e morreria de suor e labuta e não conheceria recompensa ou mesmo apreço por isso.

Como escreveu Macintyre:

A visão religiosa e suas transmutações na filosofia alemã brotam da sociedade: para que se cumpram e se realizem na boa sociedade que almejam, eles mesmos terão que abrir caminho para uma filosofia mais radical, uma filosofia de prática social. Mas a sociedade está dividida: isso é de fato um sinal dos males que a afligem. Quem então deve mudá-lo? A pista para a resposta posterior de Marx já é dada em sua descrição dos trabalhadores que ele conheceu em Paris em 1844: “Entre essas pessoas, a fraternidade dos homens não é uma frase, mas a verdade e a nobreza brilham em suas formas endurecidas pelo trabalho”.

Cristianismo e marxismo

MacIntyre concorda em grande parte com a crítica de Marx, afirmando que a história do cristianismo de apoiar ordens sociais injustas “é válida para grande parte da religião e, em particular, para grande parte da religião do século XIX”. Infelizmente, isso também vale para grande parte do cristianismo hoje.

Muitas instituições e personalidades religiosas parecem satisfeitas em levar água para os ricos e poderosos, em vez dos trabalhadores e pobres que deveriam herdar a terra. Mesmo os cristãos conversadores que são críticos do status quo, como o editor de First Things, R. R. Reno, têm pouco a dizer sobre a exploração econômica e a degradação ambiental que assolam nosso mundo. Reno, no entanto, acredita que há uma “guerra de classes, uma guerra contra os fracos… simbolizado pela campanha pelo casamento gay”, que deve ser combatido com unhas e dentes. Porque o maior problema dos “pobres” não é ser pobre, mas a perspectiva de dois homens se casarem.

Mas MacIntyre também enfatiza que a religião nunca desempenhou simplesmente um papel reacionário ou reconciliador. Ao postular um ideal transcendente de justiça e bondade com o qual o mundo material era continuamente comparado, a religião desempenhou “pelo menos em parte um papel progressista na medida em que [deu] às pessoas comuns alguma ideia de como seria uma ordem melhor”.

“MacIntyre argumenta que o marxismo foi inspirado por um espírito cristão crítico, trazendo uma “esperança” para o futuro de forma secularizada. Tal esperança radical é precisamente o que é negado pelo ‘realismo capitalista’.”

Ele castiga os apologistas conservadores, que são rápidos em usar citações de Santo Agostinho para impressionar os explorados com as inevitáveis imperfeições do mundo. Esses conservadores gastam um tempo excessivo tentando “libertar o cristianismo de sua herança do gnosticismo” e um compromisso com a justiça aqui e agora “mas se preocupam muito menos com o que o cristianismo herdou de Pôncio Pilatos e Caifás”. Eles falham em lembrar que o fundador do cristianismo ordenou aos ricos que dessem tudo o que tinham aos pobres; passou seus dias andando com pecadores, prostitutas e ladrões; e ordenou que, assim como a vontade de Deus foi feita no céu, também deveria ser na terra. Ele atacou implacavelmente as formas idólatras que a religião assumia, especialmente quando ligada a defesa do poder.

Em todos esses aspectos, MacIntyre argumenta que o marxismo foi inspirado por um espírito cristão crítico, trazendo uma “esperança” para o futuro de forma secularizada. Tal esperança radical é precisamente o que é negado pelo “realismo capitalista”, que insiste que a atual ordem econômica e política deve continuar para sempre. Mas também pode ser reavivado sempre que, nas palavras do Evangelho de Mateus, “os miseráveis da terra aprendem que Deus está do seu lado”.

Sobre os autores

é professor visitante de política no Whitman College. Ele é o autor de "The Rise of Post-Modern Conservatism and Myth" e co-autor de "Mayhem: A Leftist Critique of Jordan Peterson".

Cierre

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Published in América do Norte, América do Sul, Análise, História and Sociologia

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