UMA ENTREVISTA DE
Fabio de MassiEsta entrevista faz parte de uma série de publicações que Fabio De Masi, ex-membro do Parlamento Europeu e do Bundestag Alemão, realizou para o seu projeto de pesquisa sobre “Fintech na África e o futuro do dinheiro” com a Fundação Alemã Rosa Luxemburgo.
De Masi ficou mais conhecido na Alemanha por seu papel em expor o escândalo em torno da empresa alemã de processamento de pagamentos Wirecard e outros escândalos corporativos e fiscais.
Seu estudo “Finance meets Big Data: Financial Technology and the Scramble for Africa” [Quando as Finanças encontram Big Data: Tecnologia Financeira e a Corrida pela África], bem como outras publicações, podem ser encontradas no dossiê da Fundação Rosa Luxemburgo, que lida com temas como FinTech, Cripto e Teoria Monetária Moderna.
A entrevista com Milford Bateman foi ligeiramente atualizada e estendida após a publicação com a Fundação Rosa Luxemburgo para cobrir a nomeação do ex-CEO da Mastercard como novo Presidente do Banco Mundial.
A promessa da inclusão financeira
FM
A indústria Fintech e alguns consultores de desenvolvimento econômico sustentam que a inclusão financeira favorece a ascensão dos mais pobres. Esperanças semelhantes foram inicialmente manifestadas acerca da microfinança. Qual é a sua perspectiva sobre a inclusão financeira como meio de combater a pobreza?
MB
É uma história bastante peculiar. Iniciando apenas como microcrédito, rapidamente evoluiu para incorporar outros serviços financeiros — poupança, seguros, empréstimos, entre outros — e agora é conhecida como microfinança.
O principal defensor e vencedor do Prêmio Nobel da Paz de 2006, Muhammad Yunus, anunciou repetidamente que a microfinança erradicaria a pobreza global em uma geração.
A microfinança foi popularizada pela primeira vez nos anos 1980 em Bangladesh e na Bolívia. No entanto, no final dos anos 2000, a amarga realidade começou a surgir: a microfinança não funcionava de fato.
Apesar de centenas de bilhões de dólares de microempréstimos distribuídos aos mais pobres do mundo, não foi possível identificar qualquer impacto líquido positivo significativo na pobreza global.
Começou-se a reconhecer que, de fato, ela não conseguiu transformar o Sul Global. Esta, por exemplo, foi a perspectiva dos vencedores do Prêmio Nobel de Economia de 2019 e antigos defensores do modelo de microfinança, Abhijit e Esther Duflo. Eles foram então obrigados a mudar sua visão e admitir que a interpretação correta das evidências era que a microfinança teve pouco ou nenhum impacto positivo real.
FM
Você vai ainda mais longe ao argumentar que a inclusão financeira pode prejudicar os pobres. Como assim?
MB
As instituições de microfinanças têm extraído imensas rendas econômicas da população mais pobre. Não é por acaso que os impactos mais danosos da microfinança se fazem sentir precisamente nas localidades onde ela encontrou maior adesão: Bósnia, África do Sul, Camboja, Índia, Bolívia, Quênia, Colômbia, Peru, Sri Lanka, entre outros.
Nestes países, as operações de microfinança transformaram-se em algumas das mais rentáveis do mundo. Grande parte dos seus clientes permaneceu na pobreza, mas, almejando uma melhoria, muitas vezes se viu imersa em dívidas profundas.
Perderam os seus bens colocados como garantia de um microempréstimo — tais como habitação, terrenos, equipamentos e outros — e testemunharam as suas comunidades serem ‘niveladas por baixo’ a ponto de restarem poucos empregos capazes de incrementar a produtividade.
FM
Mas a microfinança alcançou a inclusão financeira?
MB
Sim, nos anos 2000, a indústria de microfinança havia estendido a inclusão financeira no Sul Global a novos patamares, alcançando o que podemos chamar de inclusão financeira ‘quase total’. Isso foi celebrado em muitos eventos oficiais, notadamente aqueles promovidos pela influente Campanha da Cúpula do Microcrédito (Microcredit Summit Campaign.).
É útil para os pobres globais terem mais e melhores serviços financeiros à disposição, mas a chave é a maneira como a inclusão financeira é projetada. Até hoje, a inclusão financeira não é tanto sobre abordar a pobreza global, mas sobre continuar a construção de mercados financeiros que incluam os pobres como clientes, a fim de beneficiar os investidores globais.
FM
Então, por que ainda estamos discutindo inclusão financeira 20 anos depois, se ela falhou em reduzir a pobreza?
MB
Quando ficou claro, no final dos anos 2000, que a microfinança não estava funcionando, o progresso na promoção da inclusão financeira passou a ser descrito como ‘insuficiente’. Argumentou-se que agora precisávamos urgentemente ‘percorrer a última milha’ para alcançar a inclusão financeira ‘total’.
Como é possível que a inclusão financeira ‘quase total’ não tenha tido impacto real nos níveis globais de pobreza, mas que facilitar um pouco mais de inclusão financeira agora resolverá o problema da pobreza global? Essa alegação generalizada não fazia absolutamente nenhum sentido. No entanto, era, e ainda é, muito amplamente aceita.
FM
Por que isso?
MB
As alegações em torno da inclusão financeira são, de fato, nada mais do que uma cortina de fumaça para continuar expandindo a oferta de microfinança. Lembre-se de que a indústria de microfinança nos anos 1990 começou a perceber que “nossa, nós podemos realmente ganhar muito dinheiro” ao estender seus tentáculos financeiros — poderíamos dizer — para as comunidades mais pobres.
Alguns exemplos, como o Compartamos Banco México, o SKS Microfinance Limited na Índia e o ACLEDA no Camboja, demonstraram que, com a organização correta, escala suficiente e uso criativo de garantias, uma instituição de microfinança grande o suficiente pode gerar muito dinheiro para seu CEO e seus investidores.
O que aconteceu com os clientes e, também, suas comunidades, simplesmente não era de interesse real para os investidores, não mais do que as instituições financeiras de Wall Street se preocuparam em considerar como o aumento na oferta de hipotecas subprime altamente lucrativas impactaria os desafortunados indivíduos que as contrataram, muitos deles em comunidades minoritárias.
O crescimento explosivo na oferta global de microfinança ocorreu nos anos 2010 sob o disfarce de ‘expansão da inclusão financeira’. Esse crescimento foi realmente impulsionado pela comunidade de investidores, os CEOs, os acionistas e até mesmo muitos consultores externos que lucraram extremamente bem com isso.
Além disso, esse rápido crescimento foi também impulsionado pelas instituições internacionais de desenvolvimento, como o Banco Mundial e a USAID, e pelos principais governos ocidentais, notadamente os governos dos EUA e do Reino Unido.
O surgimento das Fintechs
FM
Como as fintechs se relacionam com a microfinança?
MB
As fintechs são frequentemente descritas como ‘microfinança em esteroides’. É claramente a próxima fase na evolução do modelo de microfinança. A história começou no final dos anos 2000, quando ficou claro que a microfinança não tinha funcionado e, ainda pior, que estava associada a muitas consequências econômicas e sociais negativas para os pobres.
Mas, precisamente neste ponto, surgiu esta inovação chamada Fintech (tecnologia financeira) que tornou obsoleto o antigo modelo de microfinança ‘físico’ e catapultou a microfinança para a era digital. Os investidores viram uma oportunidade incrível e a aproveitaram. Uma nova rodada de extração de lucro à custa dos pobres globais havia se aberto.
FM
Existem benefícios em fornecer tecnologia financeira aos mais pobres?
MB
Muitas inovações, incluindo inovações financeiras, começam sendo benéficas para os pobres. Mas os problemas iniciam, em geral, quando tais inovações financeiras são então comercializadas e privatizadas. Assim que corporações privadas de fintechs conquistam uma base de clientes e se tornam oligopólios, ou até mesmo monopólios, o que é o objetivo desses modelos de negócio escaláveis e baseados em dados, a situação muda drasticamente. Os pobres deixam de ser os beneficiários de determinada inovação financeira e se tornam, cada vez mais, suas vítimas.
Observamos isso inicialmente com o caso do M-Pesa no Quênia, a icônica plataforma de transferência de dinheiro que, efetivamente, deu origem ao movimento global das fintechs no início da década de 2010. O M-Pesa começou com a ajuda da agência de desenvolvimento internacional do Reino Unido na época, a DFID, e todos os envolvidos afirmavam ter boas intenções e esperavam que o M-Pesa fosse “uma ótima forma de auxiliar os pobres do Quênia”. Muitos economistas acadêmicos desenvolvimentista receberam financiamento generoso para apoiar a narrativa do M-Pesa.
Contudo, a empresa controladora, Safaricom, sob a qual o M-Pesa operava, sucumbiu à pressão dos investidores e rapidamente se transformou em um dos gigantes corporativos mais explorador da África, senão do mundo. Seus lucros ultrapassaram muitas corporações ocidentais. Pior ainda, outras Fintechs estão agora emulando esse modelo. O M-Pesa se tornou uma inovação que extrai valor dos pobres do Quênia.
Esse fato é cada vez mais reconhecido por acadêmicos e economistas desenvolvimentistas, além de alguns profissionais do setor. Até certo ponto, o governo queniano também começou a tentar controlar a Safaricom e outras plataformas de fintechs recém-criadas por volta de 2020, por meio de regulamentações mais estritas, aumento dos impostos, e assim por diante. Mas, ao menos até o momento, o impacto desses esforços recentes tem sido mínimo.
Financiando investimentos ou sobrevivência?
FM
A narrativa usual de como a inclusão financeira beneficiaria os pobres é, em resumo, a seguinte: os sub-bancarizados recebem empréstimos que, por sua vez, aumentam a produtividade ao permitir que comprem melhores ferramentas ou fertilizantes na agricultura, ou fornecendo estoque para atividades empreendedoras de pequena escala. Se olharmos para a microfinança e fintechs, isso se concretizou?
MB
Bem, vamos olhar para a experiência da África do Sul após o Apartheid. A microfinança foi fortemente impulsionada no início dos anos 1990 por instituições como o Banco Mundial, o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o governo dos EUA.
Seu argumento era de que mais microfinança apoiaria o empreendedorismo em massa entre a população negra e lidaria rapidamente com o terrível legado de pobreza, desemprego e privação. No entanto, o modelo de microfinança acabou sendo um desastre para a população negra do país em várias frentes.
Os montantes envolvidos nos microempréstimos eram tão pequenos, por definição, que principalmente apoiavam atividades empreendedoras ‘de sobrevivência’, que, coletivamente, tinham pouco ou nenhum impacto sustentável no bem-estar da comunidade em geral.
Sim, a África do Sul viu muitas novas microempresas surgirem com a ajuda da microfinança, e uma pequena parte se saiu bastante bem, mas quase tantas dessas novas entradas colapsaram rapidamente. Outros acabaram gerando quase nenhum retorno financeiro, lutando para se manterem no mercado de qualquer maneira que pudessem, inclusive através de meios antiéticos e, às vezes, ilegais.
Portanto, não houve uma redução sustentável da pobreza, mas simplesmente o que os economistas chamam de ‘rotatividade de empregos’ — a constante entrada e saída de simples microempresas, um processo que tem pouco ou nenhum impacto positivo no desenvolvimento econômico local.
Como um dos principais economistas de desenvolvimento do mundo, Ha-Joon Chang, observou, se a atividade de microempresa realmente tivesse impactos tão positivos, a África como um todo já deveria ter sido muito mais bem-sucedida, pois tem o maior número de microempresas per capita em comparação com qualquer outra região do mundo.
FM
Portanto, esses empréstimos não impulsionaram o investimento e a produtividade?
MB
As microempresas simplesmente não vão aumentar a taxa de crescimento da produtividade na África, ou em qualquer outro lugar. Então, fornecer esses minúsculos microempréstimos caros, e agora até microempréstimos digitais ainda mais caros, realmente não permite que essas microempresas ou a economia local prosperem.
Sim, as pouquíssimas microempresas que se saíram bem na África foram celebradas, receberam prêmios e apresentadas ao público. No entanto, essa tática é um pouco como a loteria. Poderíamos igualmente argumentar que a loteria acaba com a pobreza porque vemos alguns vencedores que agora dirigem um Rolls-Royce. Mas só podemos concluir isso se ignorarmos o fato que a maioria esmagadora perdeu o dinheiro que gastou em seu bilhete de loteria.
A maioria dos defensores da microfinança ignora importantes desvantagens, mais notavelmente o fenômeno de saída, como até mesmo o principal economista do Banco Mundial, David McKenzie, recentemente admitiu ser o caso, porque permite que os defensores da microfinança continuem ‘vendendo’ o modelo de microfinança para governos no Sul Global.
FM
Como esses empréstimos foram usados então? A maioria dos microempréstimos financia o consumo em vez de negócios e investimentos?
MB
Os usuários de microempréstimos, não surpreendentemente, começaram a perceber a futilidade de iniciar uma nova microempresa, argumentando algo como: “Não consigo me estabelecer como vendedor ambulante, já que já existem 20 vendedores na nossa rua.
A vida é muito curta, então pelo menos pegue o empréstimo e compre comida, financie a educação dos meus filhos ou pague por uma emergência médica de um parente!” Muitos esperavam que, no futuro, um emprego formal, uma herança ou uma vitória no jogo surgisse e ajudasse a pagar a dívida.
Então, o uso de microempréstimos mudou para satisfazer as necessidades de consumo em vez de investir em uma microempresa. E é aí que ainda mais problemas começaram a surgir, porque se o microempréstimo não impulsiona a geração adicional de renda, como você então paga a dívida? O resultado inevitável foi que países como a África do Sul se tornaram economias com algumas das maiores relações de dívida doméstica do mundo. Quênia, Ruanda, Tanzânia e outros países tiveram um desenvolvimento semelhante, mas a África do Sul se destaca em muitos aspectos.
Vencedores e perdedores do microcrédito
FM
Quem foram os vencedores e perdedores nesse jogo de microcrédito na África do Sul?
MB
À parte de um pequeno número de histórias de sucesso, ou outliers, a comunidade negra na África do Sul realmente não se beneficiou dos microempréstimos. Mas para aqueles do outro lado da equação — os credores e investidores — as coisas foram, bem, brilhantes. A classe de credores e investidores é composta pelas antigas elites financeiras da África do Sul que estavam por trás do Capitec Bank e do African Bank, que já foram os dois maiores bancos de microcrédito do país.
Por muito tempo, o Capitec Bank obteve lucros espetaculares com microempréstimos sem garantias, sabendo que despejar microempréstimos caros nas comunidades mais vulneráveis — como os trabalhadores da mineração na África do Sul — estava claramente causando mais danos aos clientes do que benefícios.
No entanto, esses dois bancos de microcrédito cresceram muito rapidamente, de fato, trazendo muitos milhões de novos clientes das comunidades negras mais pobres. Eles esperavam usar os vastos lucros obtidos em seu negócio de empréstimos sem garantias de alto risco para eventualmente se tornarem bancos tradicionais.
De fato, no início dos anos 2010, o Capitec Bank estava à beira do colapso. O preço de suas ações despencou e seu CEO foi forçado a sair. Mas então, de maneira bastante fortuita para o Capitec Bank, seu principal concorrente, o African Bank, desabou e isso salvou o Capitec Bank.
Tendo sobrevivido por pouco, os proprietários do Capitec Bank e seu novo CEO optaram por tirar seus enormes lucros da mesa e começar a mudar para novas áreas de negócios menos arriscadas, como atender aos sul-africanos ricos e financiar PMEs [pequenas e médias empresas] formais estabelecidas. Agora existe o TymeBank, que entrou no espaço de empréstimos sem garantias com a ajuda de fintechs.
Um aumento na oferta de microcrédito tornou uma pequena porcentagem da elite de negócios principalmente africâner da África do Sul espetacularmente rica. Basta olhar para a lista dos ‘100 indivíduos mais ricos da África do Sul’ e você verá tantos dos executivos seniores e principais acionistas do Capitec Bank nessa lista.
Mas o microcrédito não fez nada pelas comunidades negras mais pobres. Simplificando, as comunidades negras realmente não precisavam de microcrédito; eles precisavam de crédito para pequenas empresas em condições e maturidades acessíveis, bem como apoio comercial e técnico. Mas isso não é o que eles conseguiram.
FM
Parece que a financeirização e o microcrédito aliviam uma contradição que surge do enfraquecimento da participação do trabalho na distribuição de renda: eles apoiam a demanda de consumo dos pobres por meio de dívida do consumidor, enquanto permitem que os salários de pobreza sejam mantidos. No entanto, como os devedores pagam a dívida quando seus negócios falham?
MB
Bem, muitos sul-africanos já empregados começaram a acessar o microcrédito simplesmente para sobreviver até o próximo pagamento. Isso abriu a possibilidade para as instituições de microfinanças usarem o chamado sistema de penhora (garnishee system) — similar aos empréstimos consignados no Brasil. Isso permitia que a instituição de microfinanças deduzisse automaticamente a parcela do microempréstimo dos salários que os devedores recebiam.
Esse sistema, portanto, retirava das instituições de microcrédito o risco de inadimplência, pois elas podiam acessar diretamente uma proporção dos salários de seus devedores para pagar o microempréstimo — às vezes até 50 por cento. Entendo que esse sistema agora está sendo desafiado porque criou uma devastação social massiva.
A microfinança começou com a garantia social, onde as instituições de microcrédito formavam grupos de devedores, digamos, de dez mulheres, de modo que, se uma delas não pagasse o microempréstimo, todos os outros nove membros do grupo teriam que contribuir com uma quantia para cobrir o pagamento.
Isso foi uma revelação no mundo financeiro, pois significava que os pobres do Sul Global eram, pela primeira vez, vistos como “bancarizáveis”. Mas as coisas mudaram ao longo do tempo. Quando você está construindo instituições de microfinanças massivas, chega a um ponto em que não pode se dar ao luxo do custo e do incômodo de organizar esses grupos de dez mulheres para criar pressão social em torno do serviço da dívida. Então, você cada vez mais volta a formas tradicionais de garantia.
No Camboja, mais do que em qualquer outro país do mundo, os clientes agora têm que entregar o título de suas terras como garantia, e se você não pode honrar sua dívida, a instituição de microfinanças informalmente o força a vender sua terra para pagar sua dívida pendente na íntegra. Na Bósnia, você tinha que inscrever duas pessoas do seu círculo de familiares e amigos que então garantiriam o pagamento do seu empréstimo em caso de inadimplência. Em lugares como a África do Sul, eles pioneiramente implementaram essa ordem de penhora.
FM
Quais foram os problemas causados pelo sistema de penhora na África do Sul?
MB
O sistema de penhora também foi um fator que contribuiu para a ocorrência do mais terrível exemplo de violência estatal desde o Apartheid — o Massacre de Marikana em 2012, no qual a Polícia Sul-Africana (SAPS) matou 34 mineiros desarmados em greve.
O problema foi que muitos dos mineiros em greve na região de mineração de Rustenburg tinham pouco conhecimento financeiro e, como frequentemente acontece, acumularam dívidas significativas com as principais instituições de microfinanças, várias das quais estavam localizadas nas instalações das minas. Além disso, muitos dos mineiros foram recrutados em regiões rurais ainda mais pobres, pois eram considerados mais submissos.
No entanto, tendo que sustentar duas famílias — uma na mina e outra nas áreas rurais de onde foram recrutados — eles precisavam de uma renda suficiente para sustentar esse arranjo. Os mineiros mais afetados pela dívida viam um aumento salarial como a única maneira de se livrarem do fardo da dívida e recomeçarem de novo. As corporações de mineração se recusaram a ceder, o que levou à greve dos mineiros e, eventualmente, ao massacre.
FM
Alguns observadores já falam de um “estado de endividamento”. Você concorda?
MB
Eu concordo completamente. A cientista política Susanne Soederberg mostra que o estado de bem-estar pós-guerra está, em muitos lugares, sendo substituído pelo “estado de endividamento” (“debtfare state“) – um estado em que os pobres cada vez mais têm que pagar por serviços essenciais acessando microcrédito. Isso obriga os pobres a se envolverem com o setor informal em tempo integral ou parcial, independentemente do retorno financeiro, a aceitar salários de pobreza de empresas formais, a esgotar os ativos familiares, a evitar greves se estiverem empregados, tudo para manter o pagamento de seus microempréstimos. O resultado, como pretendido, é uma força de trabalho muito mais disciplinada, flexível e barata operando na base da pirâmide. Como fica claro, essa tendência é boa para investidores e elites, mas não para as pessoas comuns.
O exemplo da M-Pesa
FM
Muitas fintechs não são muito transparentes em relação aos seus modelos de negócios. Você tem um exemplo específico, digamos, sobre a estrutura de taxas que a plataforma M-Pesa ou o TymeBank na África do Sul usam?
MB
Sim, basta olhar para um dos maiores programas de transferência de dinheiro incondicional e universal do mundo no Quênia. Ele vem a ser financiado por vários bilionários dos Estados Unidos por meio de uma fundação sem fins lucrativos chamada Give Directly. É enorme em termos de transferência per capita de dinheiro.
Também utiliza um serviço de transferência de dinheiro por celular – a plataforma de transferência de dinheiro M-Pesa, de propriedade privada. O problema que surge aqui, no entanto, é que, dependendo de quanto você retira do seu rendimento básico em dinheiro de uma só vez, você deve pagar uma taxa considerável para a M-Pesa.
Agora, a M-Pesa e os economistas do desenvolvimento baseados nos Estados Unidos que estão avaliando esse programa não têm grande interesse em discutir os detalhes da estrutura de taxas, pois, eu suponho, eles sentem que isso poderia sugerir que a Safaricom, a corporação-mãe altamente lucrativa da M-Pesa, está ganhando muito dinheiro com um programa anti-pobreza bem-intencionado.
No entanto, um representante da Give Directly com quem eu entrei em contato confirmou que a M-Pesa não oferece nenhum “desconto especial” para aqueles que recebem dinheiro por meio do programa Give Directly, e assim os clientes são rotineiramente cobrados de 5% a até 20% do valor total das pequenas quantias de dinheiro que eles retiram. Isso pode ser uma quantia significativa de dinheiro a perder se você é pobre.
FM
Então, a M-Pesa não trouxe benefícios reais para os pobres?
MB
Você deve lembrar que inicialmente a M-Pesa era vista como muito barata. A alternativa naquela época, no início dos anos 2010, era colocar seu dinheiro no ônibus nas mãos do motorista ou de um amigo e enviá-lo para sua mãe em Nairóbi. Quando você conseguiu enviar pelo telefone celular, então era de fato muito mais barato.
Então, eu reconheço que inicialmente essa tecnologia liberou muito valor para o consumidor final, mas a Safaricom estava satisfeita com isso, porque eles queriam que a palavra se espalhasse e construir um mercado. No entanto, uma vez que eles alcançaram esse objetivo e depois de obterem um monopólio quase completo, inclusive por meios extremamente antiéticos, então a situação mudou e eles começaram a explorar os clientes usando seu poder de mercado específico.
Essencialmente, todas as empresas de microempréstimos e fintechs inicialmente oferecem serviços baratos, pois precisam construir rapidamente uma base de clientes e expandir seus negócios para reduzir os custos de suas operações. Mas, assim como o sol nasce amanhã, daqui a alguns anos eles começarão a aumentar os preços de todos os serviços que oferecem, porque, de qualquer forma, eles esperam que você esteja preso em sua rede.
Diretamente, a única vez que a Safaricom concordou em reduzir as taxas ultra altas da M-Pesa em seus serviços de transferência de dinheiro foi durante a Covid-19. Mas isso não foi por escolha. Houve tanta indignação com o quanto a M-Pesa estava cobrando dos pobres para enviar e receber dinheiro durante essa emergência que eles tiveram que ser forçados pelo governo do Quênia a fazê-lo.
A Safaricom também irritou muitas pessoas do governo ao insistir em continuar pagando os mesmos dividendos consideráveis aos seus investidores estrangeiros extremamente ricos durante a Covid-19, especialmente ao pagar mais ou menos o mesmo dividendo dos anos anteriores para seu acionista majoritário, a gigante britânica de telecomunicações Vodafone plc. Parece que a Vodafone queria sua contribuição usual, independentemente da difícil situação no Quênia, e a alta administração da Safaricom concordou com isso.
FM
Qual é o papel da Vodafone como acionista majoritária?
MB
De forma direta, a Vodafone do Reino Unido é famosa por evitar impostos, pagando praticamente nenhum imposto corporativo por muitos anos, utilizando inúmeras subsidiárias da Vodafone em todo o mundo que são unidades separadas pagadoras de impostos. Muitos jornais, como o The Guardian do Reino Unido, os criticaram por essa tática enganosa, embora não incomum.
A Vodafone eventualmente respondeu em seu relatório anual, essencialmente afirmando que ‘sim, é verdade que não pagamos imposto corporativo. No entanto, somos um dos maiores investidores em infraestrutura de telecomunicações vitais no Reino Unido, o que financiamos com os dividendos que recebemos do exterior’.
Em seus relatórios anuais, eles observam que uma parte significativa do fluxo de dividendos que eles recebem vem de sua participação majoritária de 40% na Safaricom. Portanto, pense nisso: a Vodafone plc financia seus investimentos em telecomunicações no Reino Unido, vitais para o desenvolvimento e crescimento do país, com os dividendos extraídos dos lucros provenientes de algumas das comunidades mais pobres do Quênia.
Fintechs orientadas pelo povo, em comparação à fintechs impulsionada por investidores
FM
Recentemente, você destacou exemplos positivos no Brasil de como a tecnologia financeira incorporada em bancos públicos ou municipais poderia beneficiar o desenvolvimento econômico local. Você poderia explicar isso um pouco mais?
MB
Existe um movimento muito interessante no Brasil que está tentando vincular a tecnologia financeira ao desenvolvimento local. Isso começou na cidade de Maricá, próxima ao Rio de Janeiro. Maricá sempre foi caracterizada por um alto grau de pobreza.
Felizmente, Maricá é governada pelo Partido dos Trabalhadores (PT) do presidente Lula, o que significa que está mais aberta a iniciativas pró-pobres que visam combater a pobreza, em oposição ao tipo de iniciativas tradicionais que enriquecem principalmente os já ricos. Além disso, Maricá possui um grande benefício, pois em sua jurisdição territorial está grande parte da indústria de petróleo e gás offshore do Brasil, que é obrigada pelo governo central a pagar uma certa quantidade de royalties para os municípios afetados por suas atividades.
Maricá possui um programa de renda básica condicionada que é pago por meio de seu banco comunitário (Banco Mumbuca) em uma moeda local (o Mumbuca) usando uma plataforma de tecnologia financeira. Isso funciona muito bem para fornecer serviços financeiros importantes para a comunidade.
O Banco Mumbuca introduziu um cartão de crédito e posteriormente um aplicativo em telefones celulares para pagar a renda básica condicionada sem a intervenção de, por exemplo, Visa, Mastercard ou PayPal.
Incentivar os cidadãos locais a pagar contas usando seus telefones celulares economiza muito dinheiro para o município. Em troca, financia o banco municipal que apoia o desenvolvimento de empresas locais. O valor gerado pelo uso da tecnologia financeira, que é geralmente apropriado pelo setor privado, agora é utilizado para o benefício público.
Eles operam sem cobrar taxas dos pobres por bancos orientados por lucro ou pelas corporações de pagamento digital. Não há cobrança para o destinatário ao receber a renda básica paga em Mumbuca. Em outras palavras, você recebe 100% do valor que lhe é devido oficialmente.
O Banco Mumbuca cobre seus custos operacionais cobrando uma taxa de um por cento das muitas empresas locais que aceitam o Mumbuca para converter qualquer Mumbuca que recebam dos beneficiários da renda básica para a moeda brasileira (o real).
O município de Maricá queria gerar benefícios sempre que possível para os cidadãos locais por meio da expansão de serviços financeiros básicos que melhoram suas vidas, e não extrair o máximo de valor deles, por exemplo, vendendo o maior número possível de empréstimos digitais caros para maximizar os lucros, que é o objetivo típico das plataformas de tecnologia financeira estabelecidas e operadas por investidores.
FM
Em que medida as receitas do petróleo e gás facilitaram o experimento em Maricá?
MB
Ter uma importante fonte de receita proveniente da indústria de petróleo e gás é naturalmente benéfico para Maricá, mas a longo prazo esse benefício desaparecerá se não for gerenciado de forma sensata. Os funcionários de Maricá parecem estar dispostos a examinar os muitos maus exemplos de má gestão da riqueza gerada por recursos naturais.
Um exemplo óbvio é o da Escócia. Ela possuía 60% do petróleo do Mar do Norte, enquanto 40% estavam no território da Noruega. O governo do Reino Unido, responsável por gerenciar centralmente o setor de petróleo e gás da Escócia, favoreceu o setor privado no desenvolvimento do setor e na criação de benefícios para a região de Grampian, onde o setor de petróleo e gás estava concentrado. Algumas instituições foram criadas, mas eram fracas e pouco financiadas, e algumas foram eventualmente fechadas. Crucialmente, os royalties foram principalmente utilizados para financiar os altos custos dos pagamentos de assistência social decorrentes do alto nível de desemprego gerado nas décadas de 1980 e 1990 pelo governo Thatcher, que forçou o fechamento de muitas indústrias altamente sindicalizadas no norte da Inglaterra, nas Midlands, Escócia e País de Gales. O governo da Noruega, por outro lado, adotou uma abordagem descentralizada e baseada em instituições. Essa abordagem se fundou no apoio a instituições regionais de P&D capazes de desenvolver e introduzir novas tecnologias e novos negócios relacionados à indústria de petróleo e gás.
À medida que o boom do petróleo e gás do Mar do Norte está chegando ao fim, pode-se comparar os resultados. Os benefícios do petróleo e gás encontrados na região de Grampian, na Escócia, e em toda a Escócia e Reino Unido como um todo, são praticamente imperceptíveis. Muitas regiões da Escócia estão lentamente deteriorando-se, tendo obtido pouco benefício do boom do petróleo e gás. A Noruega, por outro lado, é agora um dos países mais ricos do mundo, com um alto nível de expertise tecnológico em muitas áreas relacionadas ao petróleo e gás e tendo desenvolvido muitas PMEs líderes em tecnologia. E, é claro, com seu enorme fundo soberano para recorrer, o excelente progresso pode continuar bem no futuro.
Os políticos de Maricá queriam descobrir como poderiam usar as receitas do petróleo e gás para fomentar a inovação e garantir um nível muito mais elevado de desenvolvimento social. Embora o presidente Lula, durante seu primeiro mandato, tenha introduzido um programa de transferência de renda bem conceituado chamado Bolsa Família, os royalties do petróleo e gás permitiram que Maricá fosse além. Foi assim que eles conseguiram estabelecer um programa adicional de transferência de renda, que foi ampliado durante a Covid-19. Crucialmente, Maricá também estabeleceu seu próprio fundo soberano modesto para garantir que os elementos-chave do modelo de Maricá possam ser mantidos no futuro. Mas a chave aqui foi realmente o uso da tecnologia financeira de forma a beneficiar toda a população.
FM
Maricá é o único exemplo de fintech impulsionada pelas pessoas?
MB
Maricá foi provavelmente o primeiro exemplo no Brasil. Agora há outra cidade maior, Niterói, com cerca de 1,3 milhão de habitantes, em comparação com os 250.000 habitantes de Maricá, que está explorando essa ideia. Durante minha última viagem de pesquisa ao Brasil, também ouvi falar que várias outras cidades estão estudando esses experimentos de fintechs orientados para as pessoas e estão introduzindo suas próprias iniciativas semelhantes em muitos aspectos a Maricá. Atualmente, também estamos sabendo sobre alguns locais menores de São Paulo que estão tentando vincular renda básica e fintechs. No Brasil, é importante que as moedas comunitárias possam ser facilmente e a baixo custo convertidas em moeda brasileira (real) e usadas para comprar bens e serviços em qualquer lugar. Isso é importante, pois a maioria das moedas locais falhou no passado devido à incapacidade de usá-las em transações fora de um município ou região específica.
Muito depende da postura do governo central. O governo recém-eleito sob a liderança de Lula está muito focado na redução da pobreza e na tentativa de reparar os danos causados pelo regime de Bolsonaro. Entendo que a presidência de Lula está interessada em utilizar maneiras inovadoras de usar a tecnologia financeira que possa ser implementada em todo o país para reduzir a dependência de empresas como PayPal, Visa, Mastercard, JP Morgan, Goldman Sachs ou Barclays. Esse é um desenvolvimento muito interessante, e os esforços de fintechs em andamento em outras partes do Brasil, incluindo Maricá, podem ser experimentos úteis para avaliar e analisar sua eficácia.
FM
Se entendi corretamente, a renda básica em Maricá é um benefício social condicional e, portanto, claramente direcionado aos pobres?
MB
Sim, o Bolsa Família de Lula é direcionado aos 10 ou 15% mais pobres da distribuição de renda, se me lembro corretamente. Essas eram transferências condicionais de renda, pois muitas vezes esperava-se que a família garantisse que seus filhos frequentassem a escola ou que recebessem suas vacinas. Isso foi antes da Covid.
Agora, a renda básica incondicional no Quênia, administrada via M-Pesa, é diferente. Você a recebe em seu celular através do M-Pesa todos os meses e pode gastá-la como quiser. A ala libertária de direita não gosta de transferências condicionais de renda, porque você não deveria dizer às pessoas que elas devem levar seus filhos para a escola e assim por diante. Discordo disso. Acredito que as pessoas não precisam apenas de renda, elas também precisam de empregos gratificantes para fazer parte da comunidade.
Ter apenas uma renda e não fazer nada resolve muito pouco e muda muito pouco. Isso apenas ameniza um pouco a dor e, crucialmente, diminui as chances de que os pobres rejeitem totalmente o sistema capitalista. É por isso que bilionários como Mark Zuckerberg e Peter Thiel e outros apoiam uma renda básica universal.
Eles acreditam que é melhor combater a pobreza com algum dinheiro para as pessoas serem um pouco menos pobres, mas, crucialmente, os ricos possam continuar com seus negócios e suas vidas como de costume. Os brasileiros implementam a renda básica de uma maneira que beneficia e é aceitável para uma base mais ampla da classe trabalhadora.
FM
Qual a importância de alcançar escala em desenvolvimentos públicos de fintechs e que tipo de infraestrutura bancária pública maior é necessária para fornecer aos municípios a capacidade tecnológica de estabelecer moedas comunitárias bem-sucedidas?
MB
Maricá utilizou a renda extra proveniente dos royalties do petróleo e gás e expandiu o escopo do Bolsa Família. Eles direcionam pessoas que atendem a certos critérios – acredito que 40% da população agora seja elegível. Isso é enorme. Agora você começa a alcançar uma massa crítica, pois 40% da população possui a moeda local, a Mumbuca. Por isso, as empresas estão dizendo: “uau, essa é uma fatia considerável da demanda local, então eu tenho que aceitar a Mumbuca para fazer negócios!” Portanto, você vê os sinais do lado de fora dos grandes supermercados dizendo “aceitamos Mumbuca”. Escalar foi fundamental para o sucesso do modelo de Maricá.
Também é importante mencionar que o Brasil, em nível nacional, pioneirou um sistema público de pagamentos chamado Pix, que desde 2020 permite transações financeiras gratuitas entre indivíduos, empresas e governo. O Pix economiza uma quantia considerável de dinheiro para os pobres do Brasil que, de outra forma, iria para as corporações de pagamento digital, como Visa, Mastercard e Paypal. Se os EUA e a União Europeia pagam até 2,3% e 1,4% do PIB total em custos de pagamento, isso nos dá uma ideia de quanto dinheiro pode ser retido nas comunidades brasileiras graças ao Pix. Da mesma forma, as moedas digitais comunitárias operadas por fintechs comunitárias permitirão que a comunidade controle seu próprio sistema financeiro local. Dessa forma, as pequenas transações financeiras não são “exploradas” por fintechs impulsionadas por investidores e o valor não é transferido para fora da comunidade.
O presidente do Banco Mundial e a Mastercard
FM
O presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, indicou Ajay Banga como presidente do Banco Mundial. Banga é a escolha certa para o Sul Global?
MB
Não, absolutamente não. Banga foi CEO da Mastercard por muito tempo, e muitos veem a empresa como uma das mais problemáticas do mundo no setor de pagamentos digitais. A Mastercard deseja eliminar o uso de dinheiro em espécie para intermediar a maioria das pequenas transações financeiras feitas pelos pobres e extrair cada vez mais valor deles. Tal movimento não tem como objetivo beneficiar os pobres do Sul Global, como normalmente é alegado, mas sim beneficiar a Mastercard. O fato de muitos acreditarem que a Mastercard, e o próprio Banga, “querem fazer o certo” para os pobres globais é resultado de uma brilhante estratégia de relações públicas realizada ao longo de muitos anos. Infelizmente, essa não é a realidade.
O processo de eliminação do dinheiro em espécie normalmente começa lentamente, para não alarmar as pessoas comuns e os governos, e garantir que o processo não seja interrompido no meio do caminho. Mas uma vez que o dinheiro em espécie é amplamente abandonado, então a exploração pode começar, já que os pobres não conseguem facilmente voltar aos pagamentos em dinheiro. Esse é o objetivo: atrair as pessoas e, uma vez que estejam envolvidas e efetivamente não possam voltar atrás, começar a explorá-las para ganhar dinheiro! É uma tática que os americanos chamam de “isca e troca”. A necessidade de pressionar os pobres para abandonar o dinheiro em espécie o mais rápido possível também explica por que a Mastercard financia várias de suas próprias fundações supostamente filantrópicas, como a Fundação Mastercard e o Fundo de Prosperidade Rural da Mastercard. Elas operam sob a sedutora fachada de “promover a inclusão financeira” ou algum outro termo que soe pró-pobre. Na realidade, elas aceleram o processo em que os pobres globais abandonam o dinheiro em espécie e passam a usar transações intermediadas pela Mastercard, como telefones celulares e cartões de débito. O valor extraído pela Mastercard de tais transações já é bastante significativo, mas se o dinheiro em espécie puder ser totalmente eliminado, então não há praticamente limite para o valor que a Mastercard e outras empresas de pagamento digital podem extrair dos pobres. Para a Mastercard e outras empresas semelhantes, atender às necessidades de transações financeiras dos pobres no Sul Global é uma nova “corrida do ouro”.
FM
Você sabe de um exemplo específico em que Banga ou a Mastercard exploraram os pobres no Sul Global?
MB
Sim, a Mastercard – e o próprio Banga – têm sido pioneiros na extração de valor dos pobres por meio de pagamentos baseados na internet. Na África do Sul, a Mastercard se uniu à fintech norte-americana Net1, que recebeu um enorme contrato para operar o programa de auxílio social do país. Criando uma empresa local chamada Cash Paymaster Services (CPS) para conduzir os negócios, cerca de 17 milhões de pagamentos de transferência de dinheiro foram realizados. A CPS recebia uma generosa taxa do governo como parte do contrato para facilitar essas transações. No entanto, o que era ainda mais importante como fonte de lucro era usar o auxílio social como forma de garantia. A CPS conseguia utilizar suas subsidiárias para vender agressivamente muitos outros produtos aos mais vulneráveis dos pobres na África do Sul, incluindo ainda mais microcrédito (Money-Line), seguros (Smartlife), serviços públicos (uManje Mobile) e pagamentos (EasyPay). O pagamento por esses serviços e produtos era automaticamente deduzido do auxílio social antes do repasse. Para a CPS, era uma maneira brilhante e sem riscos de endividar ainda mais os pobres. Conforme os pobres começaram a afundar em níveis mais profundos de dívida, os lucros aumentaram consideravelmente. No final, a resistência cresceu a ponto de o governo sul-africano cancelar o contrato. Todo o episódio foi um grande escândalo na África do Sul, no qual a Mastercard perdeu muita credibilidade como provedora de serviços financeiros no país. Mas ela simplesmente ignorou esse episódio, pois há simplesmente muito dinheiro a ser ganho trabalhando nas comunidades mais pobres. Além disso, as instituições internacionais de desenvolvimento, especialmente o Banco Mundial, gostam da ideia de reunir todos os produtos de inclusão financeira e vendê-los aos pobres, como a CPS fez. É uma forma simples de financeirização que traz os pobres para os mercados em vez de oferecer serviços públicos relevantes a eles, e também gera retornos mais altos para as plataformas de fintech.
FM
Por que você acha que o governo dos EUA favoreceu Banga?
MB
Bem, acredito que todos sabíaamos que o governo dos Estados Unidos tem uma história de pressionar agressivamente para que as corporações e investidores americanos possuam e controlem as empresas mais lucrativas. Os EUA desejam repatriar o máximo de valor gerado do Sul Global. Por exemplo, no início dos anos 2010, o governo dos EUA, em cooperação com a Fundação Gates, tentou garantir que o setor emergente de fintechs e o sistema de pagamentos da Índia fossem dominados por empresas americanas. Seu infame “plano de desmonetização” foi, pelo menos em parte, baseado na criação deliberada de um mercado ampliado para as fintechs americanas obterem uma posição firme no sistema financeiro. No entanto, todo o projeto teve um efeito contraproducente, causando grandes perturbações econômicas e sociais nas áreas rurais. O governo Modi, mesmo sendo considerado problemático em muitos aspectos, pelo menos reconheceu a natureza do jogo e começou a impor medidas de bloqueio, como exigir que as empresas indianas liderassem qualquer parceria com corporações estrangeiras de fintech.
FM
Você espera que o governo dos Estados Unidos mude sua estratégia de financeirização dos pobres?
MB
O governo dos Estados Unidos espera contratempos, sem dúvida. Desde sua criação, o Banco Mundial tem servido principalmente aos interesses do governo dos Estados Unidos. Isso não é uma afirmação controversa. Hoje, provavelmente não há pessoa melhor para avançar ainda mais esse objetivo do que Ajay Banga, já que o setor de fintechs certamente será um dos setores mais importantes da economia digital. Não acredito que a escolha de Banga seja uma coincidência, considerando sua experiência na Mastercard e sua crença pessoal, quase religiosa, no suposto poder da inclusão financeira.
Sua nomeação pelo atual governo dos Estados Unidos, tenho certeza, foi pelo menos parcialmente condicionada a ele fazer o que é certo para o governo dos Estados Unidos a longo prazo e abrir mercados no Sul Global para corporações e investidores dos Estados Unidos. Sua tarefa imediata será garantir que os mercados permaneçam abertos, que as regulamentações sejam mantidas ao mínimo, que os esforços para taxar as fintechs sejam sufocados, e assim por diante. Talvez ele também encontre algum financiamento concessional, ou financiamento misto, para subsidiar e reduzir os riscos dos esforços das fintechs dos Estados Unidos que esperam trabalhar no Sul Global.
Os perdedores de tudo isso, é claro, são os pobres, cujos sistemas financeiros locais cairão sob o controle diário de um sistema de intermediação financeira de propriedade estrangeira, como a Mastercard. Ao contrário da venda de móveis, roupas, produtos domésticos e similares, que são eventos irregulares e muitas vezes exigem extensa publicidade, o controle do sistema financeiro local é o presente que continua rendendo — significa que você simplesmente silenciosamente recebe uma fatia de cada transação financeira todos os dias para sempre.
FM
Você espera que o Banco Mundial e Banga apoiem fintechs de propriedade pública que sirvam ao desenvolvimento econômico local, como os exemplos discutidos anteriormente no Brasil?
MB
Eu duvido. Espera-se que Banga garanta que não haja chance de quaisquer projetos de fintechs de propriedade pública local. Isso seria visto como socialismo, como é dito de forma cômica no governo dos Estados Unidos, no Banco Mundial e no FMI, até mesmo sobre políticas pró-pobres moderadas. Além disso, isso negaria aos investidores estrangeiros o ‘direito’ de entrar em qualquer mercado que escolhessem, sendo o direito fundamental concedido a eles na ordem econômica global atual.