O gaúcho de Alegrete João Alves Jobim Saldanha (1917-1990), falecido há exatos trinta anos, foi um revolucionário dentro e fora de campo: treinador de futebol, jornalista e militante comunista, foi o gênio que idealizou a seleção brasileira tricampeã no México em 1970, considerada uma dos maiores times da história do futebol mundial com gigantes como Pelé, Rivelino, Gerson, Tostão, Jairzinho e tantos outros. Antes, havia treinado nada menos do que o Botafogo de Garrincha.
Em tempos de um futebol brasileiro tão quadrado, tão previsível, ou “moderno” como dizem, ligado por vezes à extrema-direita e a uma economia política de “exportação” de atletas cada vez mais jovens para as arenas européias, chega a surpreender a memória de que em outros tempos havia um personagem como Saldanha – na linha de frente da luta dos trabalhadores em várias instâncias da vida nacional.
Entre aquele futebol brasileiro dourado e o nosso – tão tétrico, derrotado e ligado ao bolsonarismo – houve algo no caminho que não foi o 7×1, já em si apenas um sintoma tardio: a demissão de Saldanha por pressão do então ditador general Emílio Garrastazu Médici pouco tempo antes da Copa de 1970 é um dos elementos-chave para se entender essa degeneração, assim como para pensar as formas de superá-la. Saldanha, o “João Sem Medo” das minhas memórias de infância, acaba sempre me remetendo também a meu pai, que costumava dizer: “já houve um futebol diferente desse”.
Genialidade em campo
Desde a profissionalização do futebol brasileiro, nos anos 1930 (não à toa junto com a modernização getulista), da qual a família de Saldanha participou ativamente, o futebol se tornou um fenômeno de massas fabuloso: frequentemente centenas de milhares iam aos estádios que eram construídos e ampliados, negros e pobres alcançavam um destaque em um segmento importante da vida nacional pela primeira vez. Os clubes continuavam nas mãos da burguesia, os “cartolas”, mas o futebol ganhava efetivamente uma dimensão popular, como nunca antes.
Em meio a essa efervescência, o país passou a produzir o que havia de mais interessante em matéria de futebol no mundo: a ginga, a dança, a inteligência da classe trabalhadora brasileira, marcada pelas suas origens africanas, indígenas e do campesinato europeu migrante – e antiburguês – recusava a miséria nacional de tentar reproduzir e imitar a Europa e os Estados Unidos. Se os britânicos inventaram o futebol na Europa, os brasileiros o reinventaram na América.
A ditadura militar iniciada em 1964 via o auge do futebol brasileiro, uma expressão do “Brasil Bossa Nova” que os militares, paradoxalmente, precisavam negar para justificar sua intervenção golpista naquele tenebroso abril. Sob os governos dos progressistas de Juscelino Kubitschek e João Goulart, o Brasil, vejam só, havia se tornado bicampeão mundial, com inúmeros jogadores negros e plebeus em campo.
Em 1966, contudo, o Brasil perderá a Copa da Inglaterra, disputada em solo inglês e vencida pela seleção local, sob muitas críticas de favorecimento da arbitragem – uma Copa feita sob medida para inglês ver. O time brasileiro, mal escalado e perdido em campo, decepcionava, desencadeando um brutal pessimismo nas massas.
Por essa razão, o então jornalista João Saldanha foi contratado no início de 1969 para comandar a seleção brasileira, às vésperas da disputa das Eliminatórias da Copa. Na época, as eliminatórias eram disputada em tiro curto, o que gerava o perigo de uma desclassificação que poderia ser desastrosa para o regime. Cronista esportivo, em um tempo em que escritores de primeira linha ocupavam as páginas dos grandes jornais e revistas para comentar o futebol, Saldanha era uma dessas estrelas e entendia o futebol como uma forma de arte popular. Como certa vez refletiu em entrevista ao jornalista Geneton Moraes Neto:
O futebol é um ramo da arte popular. O Brasil é um país eminentemente pobre. Para o futebol, basta uma bola. O menino descalço pode jogar. Uma rua, uma bola de pano ou de borracha, uma bola qualquer e pronto: o menino joga. Como esporte de pobre, é evidente que o futebol tem uma transa bem maior com o Brasil do que com a Dinamarca… É só. É uma expressão da arte popular. Todo mundo tem necessidade de expandir a vocação artística em qualquer coisa. Há cantor de banheiro às dúzias e jogador de futebol aos milhões. Poucos, entretanto, conseguem atingir o estrelato.
Saldanha veio e arrumou a seleção. Fez o time voar nas Eliminatórias. Animou a massa. Retomou a confiança nacional. E nem por isso deixou de criticar a ditadura que, paradoxalmente, se usava do sucesso dele.
Cinco anos antes da “Laranja Mecânica” (a revolucionária seleção holandesa de 1974), Saldanha fazia da seleção brasileira um time altamente inteligente, se aproveitando da alta qualidade técnica de jogadores como Pelé, Tostão e Gerson. Saldanha conseguia assim aplicar em campo aquilo que sua crítica jornalística antevia: a necessidade de modernizar o futebol brasileiro, fazer um esquema fluído, de constantes trocas de posição. O time pré-1970 do Brasil já antevia muito do que o futebol mostra hoje como novidade.
O João Sem Medo
Saldanha não era um treinador inexperiente, já havia brilhado antes no Botafogo dos anos 1950. Sua peculiaridade, no entanto, era intercambiar a função de jornalista e escritor com a de técnico – um homem de práxis por excelência. Cronista esportivo ácido, culto e elegante, espelhava o futebol de sua época, em uma era na qual escritores consagrados como Nelson Rodrigues se dedicavam também à imprensa esportiva. Rodrigues, gênio conservador que só mais tarde estaria em confronto a ditadura, apelidava o amigo Saldanha, um comunista convicto e orgulhoso, pela imortal alcunha de João Sem Medo.
A ditadura, contudo, avançava. Ao final daquele ano de 1969, o líder comunista Carlos Marighella, amigo pessoal de longa data de Saldanha, foi covardemente assassinado em uma emboscada, a mando do regime. O então treinador da seleção ficou enfurecido. Há poucos meses o general Médici havia assumido a presidência, radicalizando a repressão.
Saldanha não se calou. Denunciou o crime e montou um dossiê no qual publicizava a existência de milhares de presos políticos, mortos e torturados pelo regime militar brasileiro. No sorteio das chaves da Copa de 1970, em janeiro daquele ano na Cidade do México, distribuiu o dossiê para autoridades internacionais.
A ditadura pressionava os comandantes do futebol brasileiro como, por exemplo, João Havelange, o futuro presidente da FIFA. A briga, no entanto, precisava ser travada em outra esfera: Médici insistia em convocar Dario, atacante do Atlético-MG, numa ingerência agressiva no trabalho de Saldanha, que, por sua vez, se recusava a obedecer.
A insistência do ditador Médici tinha pouco ou nada ver com futebol, e mais com uma implicância contra o sucesso e a coragem de Saldanha. Uma coragem inabalável, até mesmo frente a sua queda em março de 1970, meses antes da Copa para a qual Saldanha havia classificado a seleção. A gota d’água, depois de já ter se recusado a jantar com o ditador, foi a resposta curta e grossa a um jornalista sobre não ter convocado Dario: “Quando ele [Médici] formou o Ministério não me pediu opinião. Por isso não quero a opinião dele na hora de eu formar o meu time”. Era uma coragem, afinal, de berço.
João Saldanha, o comunista
Saldanha era filiado ao partidão. Sua família participara das insurreições anticaudilhismo no Rio Grande do Sul, contrabandeando munição e armas desde o Uruguai. Os saldanhas precisaram fugir do Brasil e acabaram caindo na miséria, torrando a herança do pai, gasta toda na política.
A sorte iria novamente sorrir para a família Saldanha com a aliança do seu pai com o modernismo controverso de Getúlio. A República Velha caía e o pai de Saldanha, agora um homem do regime, ganhava um cartório no Rio de Janeiro, o que permitiu uma vida confortável ao jovem João. Fazendo valer a verve política familiar, João Saldanha se envolveu no movimento estudantil no Colégio Pedro II e depois na Faculdade Nacional de Direito.
Espantava que um menino quase rico se envolveria com o comunismo, ainda mais com seu pai sendo, no fim das contas, gente do getulismo. Mas Saldanha estava lá, como jornalista, intérprete e intelectual. Em 1953, na chamada greve dos 300 mil em São Paulo, ou, anos depois, demonstrando a coragem de se solidarizar pessoalmente com João Goulart, visitando-o no Uruguai, onde estava então exilado.
É por esse histórico que a ditadura impedia que um homem como esses não voltasse de uma Copa, que possivelmente ganharia, nos braços do povo. Para o seu lugar, foi escolhido Zagallo, ex-campeão mundial, favorecido em grande medida pela contusão do craque Pepe, que o tirou da Copa de 1958. Homem do regime, Zagallo tocou de forma obediente o trabalho até o final e voltou para casa com o tricampeonato.
Quem acredita que foi Zagallo quem realmente ganhou 70, certamente não viu seus fracassos na Copa de 1974 e de 1998, para entender do que se tratava sua concepção de futebol, oposta simetricamente a de Saldanha, uma vez que casava seu conservadorismo político com o conservadorismo tático.
Saldanha, demitido após ter vencidos todos os jogos oficiais do Brasil, ironicamente perdeu apenas um jogo: um amistoso não oficial contra o Atlético-MG, de Dario, o Dadá Maravilha, que era o pivô da celeuma com Médici – Zagallo, ao final, o convocou para a Copa de 1970, mas o jogador não chegou a disputar uma única partida.
Camarada Saldanha, presente
Depois da expulsão de Saldanha, o futebol brasileiro começou a experimentar uma decadência gradual, ainda que pouco sentida nos primeiros anos. O futebol foi se tornando mais mecânico, convencional, corrupto na relação entre ditadura, cartolas e chefes políticos locais. Os anos 1970 não chegariam a ver outro título mundial, apesar das belas equipes do nosso futebol.
Os anos da redemocratização e da reabertura foram, ao contrário, uma tentativa de reverter essa decadência: com Telê Santana na seleção, o Brasil viu pela última vez um time colocado para o ataque e para o jogo bonito. Os clubes tentaram se livrar dos grilhões da CBF e fundar o Clube dos 13. Entre atletas e treinadores não faltaram aqueles que se esforçaram para mudar a forma hierárquica e disciplinar de jogo, com experiências como a gloriosa Democracia Corintiana. O respiro, no entanto, foi curto, e logo esse ensaio foi revertido.
O final dos anos 1980, com a ascensão de Ricardo Teixeira, o “genro de João Havelange”, para o comando do futebol brasileiro trouxe, com êxito, o neoliberalismo para o futebol: em vez das relações duras de Estado, a colonização pelo mercado, com sua legião de “empresários de jogador”, os milhões nas contas de alguns poucos atletas, e uma geração de pobres iludidos com a promessa de fama e riqueza.
A falência espetacular desse modelo veio a público, ironicamente, numa Copa disputada no próprio Brasil. O desmonte veio com as estruturas globais, e dos Estados Unidos, se voltando contra “a corrupção da FIFA”, o que criou uma Copa acéfala e acelerou todo o processo. Se antes, à base de alguma retranca dos conservadores Carlos Alberto Parreira – um ser quase exclusivo do circuito da seleção – e Luiz Felipe Scolari – este controverso e amplamente vitorioso nos clubes que treinou –, hoje o futebol brasileiro parece não ter outro lugar que não exportar jogadores muitíssimo jovens para a Europa, montar um time para chegar apenas às quartas de final da Copa e explorar imageticamente seus craques-garotos propaganda, inclusive no apoio ao bolsonarismo.
No bolsonarismo, os dois momentos da tirania brasileira se encontram: a patriotada direitista militar e o neoliberalismo se unem com os jogadores garotos-propaganda de uma modo de vida de ostentação que premia os pobres que tiverem “mérito” – uma ilusão tão real quanto a promessa de ascensão social por meio da loteria – e que aclamam um “mito” que, em plena pandemia, procura forçar o retorno dos campeonatos.
No entanto, assim como Saldanha recusava a conclusão apressada de que o futebol era uma forma de “alienação popular” à sua época, é preciso pensar, à luz da práxis do velho mestre, que o futebol está longe de ser limitado a um meio exclusivo de reprodução da lógica capitalista da nossa sociedade: trata-se de uma instância profundamente capturada justamente por seu potencial não apenas no imaginário das massas – inclusive do ponto de vista do imaginário racial, no que diz respeito à autoestima do Brasil não-branco – e sua filosofia do corpo.
Se jogadores como Juninho Pernambucano ou Raí, ou o saudoso Dr. Sócrates, são exceções, por outro lado as falas deles ressoam de maneira extremamente potente, uma vez que conseguem sintonizar o discurso ao interesse objetivo da classe que faz o futebol, e que se representa por meio dele. Imaginar um Brasil feliz, vitorioso, justo, autônomo e livre passa também por aí. Esse é o Brasil de lutadores como João Sem Medo, e é nossa responsabilidade que sua memória esteja sempre presente.
Sobre os autores
é publisher da Revista Jacobina, editor da Autonomia Literária, mestre em direito pela PUC-SP e advogado.
[…] storytelling (unfortunately for Portuguese readers only). Journalist Alex Bellos, in his column Brazilian way of life, can provide you with more details and stories about Saldanha’s particular […]