A modernidade capitalista é a crise civilizacional mais mortífera e infindável da história. A destruição geral dos últimos duzentos anos têm desestabilizado milhares de vínculos evolutivos no ambiente natural. É provável que ainda não estejamos plenamente conscientes da devastação que isto tem causado à flora e à fauna. Contudo, esses reinos, assim como a atmosfera, estão claramente emitindo sinais constantes de socorro.
Por quanto tempo a humanidade pode continuar suportando esta modernidade que inflige uma extensa devastação ambiental e que causa a desintegração da sociedade? Como a humanidade aliviará a dor e a agonia da guerra, do desemprego, da fome e da pobreza?
A alegação de que o Estado-nação protege a sociedade é uma vasta ilusão. Pelo contrário, a sociedade tem sido cada vez mais militarizada pelo Estado-nação e totalmente submersa em uma espécie de guerra. Eu chamo esta guerra de “sociedadecídio”, imposto de duas maneiras.
A primeira: o poder e o aparelho estatal controlam, oprimem e fiscalizam a sociedade.
A segunda: a tecnologia da informação (os monopólios midiáticos) dos últimos cinquenta anos substituiu a sociedade real por uma sociedade virtual. Como a sociedade pode ser defendida contra os golpes dogmáticos do nacionalismo, do religiosismo, do sexismo, do cientismo, das artes e da indústria do entretenimento (incluindo esportes, novelas, etc.) aplicados pela mídia 24 horas por dia, 7 dias por semana?
Tornou-se muito claro que o estatismo nacional no Oriente Médio é, de fato, uma das ferramentas de dominação da modernidade capitalista. O Tratado de Versalhes esteva para a Europa, assim como o Acordo Sykes-Picot, elaborado entre britânicos e franceses em 1916, está hoje para o Oriente Médio: “A paz para acabar com a paz”.
Os Estados-nação atuais denotam o mesmo significado na região que os governadores do Império Romano, mas são ainda mais colaboracionistas com a modernidade capitalista — e estão ainda mais afastados das tradições culturais regionais. Eles estão em guerra contra seus próprios povos internamente, e uns contra os outros externamente. A dissolução das sociedades tradicionais significa guerra contra os povos — e mapas traçados com uma régua são um convite para guerras entre Estados. E nenhuma das duas é adequada para superar esta crise profunda; aliás, sua existência só faz aprofundá-la.
A meu ver, uma terceira guerra mundial está acontecendo, e o Oriente Médio é seu centro de gravidade. Em termos de alcance e duração, esta guerra é mais profunda e mais longa do que as duas primeiras guerras mundiais. O resultado é a decadência e a desintegração. E ela só poderá terminar com a formação de um novo equilíbrio regional ou global. Eu diria que o destino da terceira guerra mundial da modernidade capitalista será determinado pelos desenvolvimentos no Curdistão. Isto se evidencia no que está acontecendo no Iraque e na Síria.
A existência de Estados-nação é uma anomalia na história do Oriente Médio — e insistir nessa existência leva a desastres. O Estado-nação turco acredita que se eternizará com um genocídio final dos curdos — finalmente tornando-se um Estado-nação integrado com seu próprio país e nação. Claramente, a menos que a Turquia abandone este paradigma, ela será uma mera coveira para os povos e culturas sociais da região — incluindo o próprio povo turco. Do mesmo modo, o futuro do Irã continua incerto tanto para o próprio Estado-nação, quanto para a região.
Mas a situação dos curdos — retalhados pelo estatismo nacional no Oriente Médio, impondo diferentes formas de aniquilação e assimilação em cada um dos seus pedaços — é uma catástrofe completa. Os curdos estão, por assim dizer, condenados a uma agonia mortal e de longo prazo.
A luta curda
Contudo, as condições já amadureceram — e os curdos, por meio da sua luta, podem sair do movimento rumo ao genocídio. Isto só é possível através do projeto de uma nação democrática — uma nação baseada em cidadãos livres e iguais, existindo juntos em solidariedade, englobando todas as realidades culturais e religiosas. Este é, portanto, um projeto concebido para ser forjado em conjunto com os outros povos da região. A metodologia para alcançar esse objetivo está presentemente sendo desenvolvida, passo a passo.
Rojava e toda a Síria do Norte e Leste — dirigida por uma administração autônoma, multiétnica e multirreligiosa, baseada na liberdade das mulheres — está ascendendo como um bastião de esperança. Trata-se de uma solução modelo tanto para os povos quanto para os Estados-nação do Oriente Médio. O modelo não propõe a negação dos Estados-nação, mas propõe que eles estejam vinculados a uma solução democrática e constitucional, o que garantirá a existência e a autonomia tanto da “nação estatal” — a nação construída pelo Estado — quanto da nação democrática.
A herança das entidades étnicas, religiosas e denominacionais e suas culturas só podem ser mantidas juntas na região através desta mentalidade de nação democrática — uma mentalidade que fomenta a paz, a igualdade, a liberdade e a democracia. Cada cultura, por um lado, se autoconstrói como um grupo nacional democrático. E assim, elas podem viver em um nível superior de união nacional democrática com outras culturas com as quais já convivem.
A solução da nação democrática proposta pelos curdos permitiu afastar o Estado Islâmico — o resultado do monoteísmo religioso — em nome de toda a humanidade. Este é sem dúvida o resultado do nosso paradigma baseado na liberdade da mulher, que se tornou um modelo em todo o mundo.
Lutando pelo futuro
Os desenvolvimentos no Norte e Leste da Síria alcançaram um ponto decisivo. O reconhecimento da administração do Norte e Leste da Síria e da democracia local que ela representa para os povos árabes, curdos, armênios, assírios e outros será muito importante tanto para a Síria quanto para o Oriente Médio em geral. Nosso apelo para que as pessoas retornem da Europa, da Turquia e de outros lugares será possível quando uma Constituição Democrática da Síria for declarada.
Nossa visão sobre o conflito curdo-turco que se prolonga há quase um século é clara. Temos desenvolvido uma solução democrática para a questão curda desde 1993. Nossa posição — como vimos nas negociações de 2013 com o Estado-nação turco, realizadas em İmralı — expressa na Declaração de Newroz, quando entramos no processo de diálogo, é hoje mais importante do que nunca. Reforçamos tal posição na declaração de sete pontos que apresentamos em 2019. Insistimos na necessidade de reconciliação social e de uma negociação democrática, para substituir a cultura da polarização e do conflito.
Hoje em dia, os problemas podem ser resolvidos sem a necessidade de usar ferramentas físicas de violência, mas com soft power [poder de influência]. Sob condições favoráveis, eu poderia preparar os movimentos para a eliminação do conflito dentro de uma semana. Quanto ao Estado turco, ele se encontra em uma encruzilhada. Ele pode continuar em seu caminho de dissolução como outros Estados-nação da região, ou estabelecer uma paz digna e uma solução democrática significativa.
Em última análise, tudo será determinado pela luta entre as partes. O sucesso da luta travada pelos curdos por meio da política de paz e da política democrática determinará o resultado final. E a liberdade prevalecerá.
Abdullah Öcalan é fundador do Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK), considerado um dos mais importantes representantes políticos curdos e um dos seus principais estrategistas. Desde seu sequestro do Quênia em 1999 e subsequente julgamento e pena de morte — reduzida a prisão perpétua sem condicional — ele tem sido mantido em total isolamento na ilha İmralı, onde foi o único prisioneiro durante quase onze anos.
Öcalan escreve extensivamente sobre história, filosofia e política, e é considerado uma figura chave para uma solução política da questão curda. Como o autor tem sido mantido totalmente incomunicável e sem poder consultar seus advogados ou receber visitas regulares há muitos anos, este artigo de opinião foi editado a partir de seus escritos e declarações recentes na prisão. Seus trabalhos recentes incluem The Sociology of Freedom (2020) e The Political Thought of Abdullah Öcalan (2017).
Sobre os autores
é fundador do Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK).