No dia 12 de outubro, os espanhóis celebram o Dia da Hispanidade, que também coincide com o Dia das Forças Armadas. Essas celebrações já são normalmente questionáveis, uma vez que exaltam o caráter imperialista da cultura espanhola.
Na atual conjuntura, as celebrações podem ser analisadas como a consolidação da agenda neocolonial, racista e anticomunista dos movimentos da extrema direita espanhola, em especial o partido Vox – cujo presidente, Santiago Abascal, reivindicou a data dizendo estar orgulhoso por “nos sentirmos herdeiros daqueles que descobriram o novo mundo”.
Abascal diz sentir orgulho de ser herdeiro
“daqueles que acabaram com o genocídio dos povos indígenas, daqueles que inventaram o Império dos Direitos Humanos, dando ao mundo a maior obra de fraternidade universal que um povo já contribuiu, do intrépido que deteve os turcos no Mediterrâneo e, ainda, daqueles que regaram com o seu sangue os campos da metade da Europa para fazer uma Espanha à medida dos seus sonhos!”
Não é surpreendente que ele ignore o genocídio dos povos originários da América, a escravidão e todas as outras mazelas que o colonialismo provocou, o preocupante é que sua retórica esteja exercendo influência em outros países do mundo, em especial daqueles que sentiram na pele a fúria do colonialismo hispânico.
Apesar do Vox liderar essa movimentação, não podemos esquecer dos conservadores tradicionais do Partido Popular da Espanha (PP), Isabel Díaz Ayuso, presidenta da Comunidade de Madrid e membro do partido, que disse que “o indigenismo é o novo comunismo”. Ayuso ainda acusou as articulações indígenas de quererem “dinamitar a herança cultural hispânica na América Latina” — ignorando o genocídio cometido contra esses povos pelos seus ídolos numa prática que dura até hoje.
Foro de Madrid
Graças ao Foro de Madrid – uma iniciativa lançada em 2020 na Espanha, Portugal e países latino-americanos, criada “para conter os avanços do comunismo” –, o Vox está tomando um papel de liderança, no nosso continente, nessa cruzada de guerra cultural proposta pela extrema direita global. Em um vídeo gravado para o Vox pelo filho de Jair Bolsonaro, o deputado federal Eduardo Bolsonaro, membro do Foro de Madrid, ele disse que “nossos inimigos sabem que se deixarem que falemos a verdade, ganharemos essa guerra cultural”.
O denominador comum usado para unir vários atores à essa narrativa é, por sua vez, um eurocentrismo construído a partir da tradição do colonialismo espanhol e português, que mistura um apego desenfreado ao embranquecimento social e cultural e o cristianismo usado como ferramenta de dominação, como o que aconteceu a 600 anos atrás.
Não é à toa que o Vox e outros signatários da Carta de Madrid, documento que assinala a aliança entre conservadores ibéricos e latino-americanos, se sentiram tão compelidos em impulsionar Jeanine Áñez, a ditadora que assumiu o poder no Bolívia após o golpe de 2019, para o Prémio Sakharov para a Liberdade de Pensamento dado pela União Europeia, ela acabou perdendo o prêmio para opositor russo Alexei Navalny. Ao se autoproclamar presidenta da Bolívia em 2019, Áñez bradou “A Bíblia volta ao Palácio” fazendo uma crítica ao pluralismo cultural e religioso promovido pelo Movimento ao Socialismo de Evo Morales, de etnia aymara, cujo partido não só é de maioria indígena como, ainda, promoveu uma reforma constitucional para reconhecer o plurinacionalismo boliviano.
Essa iniciativa está conseguindo criar uma rede de apoio internacional, manipulação de conteúdo e de estratégias geopolíticas. Esse intercâmbio de experiências entre a extrema direita é algo que foi idealizado por Steve Bannon e o seu The Movement, mas o Foro de Madrid conseguiu levantar isso a um outro patamar, justamente por conta da relação histórica colonial da Espanha na América Latina.
Esse suposto contraponto à lendária articulação latina Foro de São Paulo é, na verdade, uma mistura de ódio cego e recalque. Recentemente, tivemos o lamentável episódio em que a TV Record convidou a espanhola Cristina Seguí para falar sobre as conspirações desvairadas da extrema direita de seu país, com ela chegando a afirmar, sem apresentar provas, que “o narcotráfico patrocinou partidos de esquerdas na Europa e na América Latina”, incluindo o PT, e claro, o Foro de São de São Paulo.
Ascensão do Vox
O Vox foi fundado em 2013 por militantes mais radicais do PP, tradicional partido de centro direita espanhola da era democrática que, no entanto, sempre tolerou quadros de extrema direita em suas fileiras, levando em consideração que o regime fascista em seu país só terminou tardiamente nos anos 1970. A memória ainda muito recente do fascismo fez com que a extrema direita não conseguisse se organizar em um partido próprio, ainda que continuasse a existir e atuar, fazendo a Espanha parecer imune a onda da extrema direita que assolava a Europa desde os anos 1980 e que piorou após a crise de 2008.
Ainda assim, foi só a partir de 2018 que o Vox tomou um protagonismo perigoso. Durante as eleições regionais na Andaluzia, o então recém-formado partido populista de direita obteve 11,1% dos votos e 12 dos 109 assentos no parlamento regional. Esse sucesso eleitoral foi repetido durante as últimas eleições regionais em maio de 2019: das 12 comunidades autônomas que realizaram eleições, ele ganhou representação em 7 (em Madrid e Murcia, pode-se dizer que o Vox tem um papel potencialmente central no equilíbrio de poder). Nas eleições gerais da Espanha em novembro de 2019, o Vox obteve a terceira maior parcela de votos.
Além das pautas que todos já conhecem, como xenofobia, racismo, negacionismo e etc., o Vox também levanta questões culturais problemáticas contra memórias históricas (como a exumação do ditador espanhol Francisco Franco), contra o feminismo ou contra a autonomia ou independência regional (o conflito catalão e basco). Todas essas questões foram enquadradas na chamada polarização esquerda-direita. O eleitorado de Vox também se encaixa no perfil sociodemográfico dos partidos populistas de direita radical: seus eleitores tendem a ser jovens, do sexo masculino e com menos escolaridade.
Liderado por Santiago Abascal, um sociólogo da cidade de Bilbao, no País Basco, região historicamente separatista. Ele se autodenomina um “patriota forte”, é neto de um prefeito franquista e filho de um líder do Partido Popular Basco. Por conta de sua história familiar, diz que anda armado para se proteger de possíveis ataques do grupo separatista basco Pátria Basca e Liberdade (ETA).
O contra-ataque
Além do apoio escancarado às extremas direitas latino-americanas e o saudosismo do colonialismo, não podemos esquecer que isso se choca com a agenda de união das nações da América Latina, que buscam há décadas enfrentar esse passado aterrorizante.
O dia 12 de outubro coincidiu com a celebração da primeira viagem de Cristóvão Colombo às Américas, razão pela qual a data também é comemorada nos Estados Unidos, onde eles chamam de Dia de Colombo – muito embora esse dia não tenha nada de comemorativo, pois marca o início do processo de genocídio dos povos originários. Tanto é que em diversos países da América Latina se comemora o Dia da Resistência dos povos indígenas na mesma data.
Enquanto a extrema direita espanhola faz apologias ao colonialismo, a esquerda latino-americana além de estar, cada vez mais, celebrando os povos originários, se revoltou com a postura de parte dos espanhóis. O presidente venezuelano, Nicolás Maduro, escreveu uma carta ao Rei da Espanha, Felipe VI, com o propósito de protestar contra a celebração da conquista da América e exigir respeito pela memória dos povos indígenas que sofreram durante este processo Maduro disse
“Nossa intenção com esta carta é fazer ao mesmo tempo um alerta ao povo espanhol, um apelo à sua consciência histórica e à sua razão política, em face do ressurgimento da supremacia e do fascismo que nos leva de volta à parte mais escura da Europa imperial”.
O venezuelano também se mostrou disposto a unir forças com Andrés Manuel López Obrador, o primeiro esquerdista a presidir o México, que no começo do seu primeiro ano de mandato em 2019 gravou um vídeo antológico do sítio arqueológico de Comalco, onde ele disse
“Enviei uma carta ao rei espanhol [Felipe VI] e outra ao Papa para que os abusos sejam reconhecidos e um pedido de desculpas possa ser feito aos povos indígenas pelas violações do que hoje chamamos de direitos humanosHouve massacres… A chamada conquista foi feita com a espada e a cruz. Eles ergueram igrejas em cima de templos… Chegou a hora de se reconciliar, mas primeiro eles deveriam pedir perdão.”
O secretário executivo da Aliança Bolivariana dos Povos de Nossa América (ALBA-TCP), Sacha Llorenti, resumiu bem a situação:
“A direita espanhola vem construindo um discurso que visa mudar o passado. Seu dinheiro irá para candidatos que garantem o fornecimento de recursos naturais e a privatização.Eles querem perpetuar a “maldição de Malinche” de pegar ouro como bugigangas. Mas não vivemos em 1492.”
Sobre os autores
é uma jornalista independente e comentarista política, anti-imperialista. Nascida no Brasil mas radicada na Escócia.
[…] na América Latina. Por meio de sua teoria excêntrica de uma “Iberosfera”, ele começou a estreitar os laços com partidos de opinião semelhante no mundo de língua espanhola e portuguesa, incluindo o […]