O que possibilitou aos nazistas tomar e estabelecer-se no poder autocrático na Alemanha por mais de uma década e realizar os crimes horrorosos pelos quais foram conhecidos? Foi um Estado policial que pisoteou os direitos à privacidade, manifestação e discurso, imposto por forças paramilitares brutais e às vezes secretas com a ajuda de um Estado de vigilância generalizado? Ou foi um comprovante de vacina?
No caótico mundo pandêmico onde a extrema direita vem mantendo sua influência nos Estados Unidos e outros lugares do mundo, isto não é nem sequer uma questão: claramente, é culpa das vacinas. Desde que Joe Biden emitiu um ampla obrigatoriedade de vacina, a mídia e os políticos de direita não perderam tempo em desenvolver comparações ao nazismo, chamando esta ação de “fascista”, “totalitária”, “autoritária” e invocando suásticas e o Código de Nuremberg.
Só há, aí, um único problema: na verdade, os nazistas não emitiram uma obrigatoriedade de vacinação. Aliás, a direita teria gostado muito das políticas de vacinação do Terceiro Reich, que estavam na linha das suas recomendações atuais: principalmente, na flexibilização das normas de vacinação compulsória que já estavam em vigor na Alemanha por décadas para substitui-las por uma política sanitária contrária, como iniciativas voluntárias. Inclusive, temos gravações de conversas privadas de Hitler e seus colegas nazistas demonstrando claramente isto, afastando-se da visão de obrigatoriedade de vacina, para reforçar suas metas genocidas. Eles sabiam que suspender a vacinação obrigatória e outras inovações da saúde pública alemã ajudaria a matar mais pessoas indesejáveis e “inferiores” que eles queriam se livrar.
Como foi a história
Recuemos momentaneamente para entender a história da vacinação compulsória da Alemanha. Como nos Estados Unidos e muitos outros países, o recém-fundado Império Alemão foi forçado a dar este passo pela devastação da varíola, que havia matado dezenas de milhares de pessoas na Prússia. Em 1874, o governo imperial tornou obrigatória a vacina para adolescentes e homens entrando no serviço militar, assim como a regular vacinação para crianças. Pelos cinquenta e poucos anos seguintes, a medida foi um dos pilares da saúde pública alemã.
Na época em que Hitler e os nazistas tomaram o país em 1933, o descontentamento com as vacinas compulsórias já estava assentado por um tempo, alguns dos sentimentos anti-vacina misturavam-se com as teorias da conspiração antissemita que eram afluentes naquela época. Essa oposição foi estendida, especialmente, por um incidente em 1930 em que mais de 70 crianças morreram devido a uma vacina contra a tuberculose administrada indevidamente, no que veio a ser conhecido como o desastre de Lübeck. Como consequência, nos anos seguintes da Alemanha democrática, o governo de Weimar suspendeu a vacinação compulsória na prática, mas manteve oficialmente na lei do país.
Os nazistas fizeram a escolha pragmática de manter a nova aplicação flexibilizada da vacinação em vigor, mesmo quando mais tarde retiraram oficialmente o relaxamento em 1934, de acordo com Malte Thiessen, chefe do Instituto LWL de Vestefália História Regional. O ministério do Interior de Hitler (o departamento encarregado da polícia, entre outras coisas) propôs adicionar uma cláusula à lei de vacinação e, em 1935, o ministro instruiu que “o caráter popular das leis de saúde, que deve aparecer para ser absolutamente desejável no Estado nacional-socialista, é melhor servido se a inquietação desnecessária for evitada na implementação das leis na população”.
A vacinação obrigatória contra a vontade de crianças e pais, que havia causado indignação ao longo dos anos de Weimar, deixou de acontecer a partir da década de 1930. Em 1936, os alemães não precisavam mais provar que haviam tomado vacina contra a varíola para frequentar a escola secundária e, em 1940, a política de “flexibilização” tornou-se juridicamente vinculativa e continuou a ser usada pelos governos alemães mesmo depois da guerra. Em vez disso, os nazistas confiaram na propaganda de massa e no sistema educacional para convencer as pessoas a escolherem se queriam vacinar.
“Se, no final da República de Weimar, a atitude dos atores estatais em relação às medidas coercivas mudou cautelosamente, o Terceiro Reich anunciou a transição da coerção para a ação voluntária”, escreve Thiessen.
Além disso, é claro, pelas provas que deixaram para trás, que Hitler e outros nazistas compreenderam que qualquer política de vacinação obrigatórias teria funcionado contra os seus objetivos genocidas. Eis aqui Hitler, em 1942, comentando com outros nazistas de alto escalão seus planos para a população dos territórios russos que eles planejavam conquistar (meus grifos):
No campo da saúde pública não há nenhuma necessidade de estender para às “raças-submissas” os benefícios de nosso próprio conhecimento. Isso só resultaria em um enorme aumento das populações locais, e eu absolutamente proíbo a organização de qualquer tipo de higiene ou limpeza cruzadas nesses territórios. A vacinação obrigatória será confinada apenas aos alemães, e os médicos nas colônias alemãs estarão lá apenas para o propósito de cuidar dos colonos alemães. É estúpido empurrar a felicidade para as pessoas contra a sua vontade. Odontologia também deve permanecer um fechado para eles.
Ou veja-se Martin Bormann, o chefe de gabinete de Hitler e o líder do Partido Nazista, escrevendo em Oito Princípios para o Governo dos Territórios Orientais, também em 1942:
Os escravos devem trabalhar para nós. Na medida em que não precisamos mais deles, podem morrer. Portanto, a vacinação obrigatória e os serviços de saúde alemães são supérfluos. A fertilidade dos escravos é indesejável.
Ou considere o Instituto Robert Koch, a agência nacional de prevenção de doenças, respondendo a um pedido de uma fábrica de motores de Nuremberga para vacinas para “três mil russos”. As vacinas foram “destinadas principalmente para os alemães” e não aos russos, posicionou-se o Instituto, levando a fábrica a retirar o seu posicionamento “incorreto” e a reafirmar que vacinar “trabalhadores estrangeiros” não era uma opção. Os nazistas entenderam que se a intenção é exterminar contingentes populacionais, assegurar que estes fossem vacinados contra doenças contagiosas não ajudaria muita.
Então, se os nazistas relaxaram a vacinação compulsória para seu próprio povo e decidiram não fornecê-la aos “sub-humanos” que conquistaram, como eles impuseram o totalitarismo dentro e fora de seu país? Ora, fazendo todas as coisas que os governos realmente fazem quando centralizam o poder de uma forma autoritária: banindo todos os outros partidos, criminalizando a dissidência, criando um vasto Estado de vigilância e instigando uma polícia secreta a coagir a população para infligir prisão arbitrária, tortura e demais violências. Em outras palavras, exatamente que vimos saindo amplamente da boca de direitistas nos últimos vinte anos.
Ainda preguiçosos nestes anos
O que podemos concluir de tudo isso? Primeiro, negar que as vacinas ou a obrigatoriedade delas sejam parte de um grandioso plano de controle fascista. Cabe lembrar que os nazistas desprezaram a demanda por vacinas, e passados 50 anos, desde a lei imperial de vacinação de 1874 até o fim da democracia alemã, o programa de vacinação obrigatória na Alemanha não foi característica marcante dos nazistas no controle do país.
Comprar a obrigatoriedade de vacinação ao fascismo é uma falácia contagiosa, típica do nazismo, cujo legado ainda consegue ser politicamente utilizado. A direita invoca Hitler nessas questões, como controle de natalidade e aborto, ou outros programas de produção públicas, de regulação do mercado, assim como de políticas de bem-estar social, quando argumenta que, hoje em dia, qualquer coisa semelhante a isso induz ao totalitarismo. No entanto, quando calam-se sobre o militarismo nazista, sobre a vigilância massiva, a destruição dos sindicatos e a restrição das liberdades civis, é porque eles almejam, entusiasticamente, estas políticas. Ao mesmo tempo em que os Estados controlados pelo GOP (Grand Old Party: republicanos) no país enfraqueceram o poder das políticas de saúde pública em nome de uma suposta garantia dos direitos individuais e para impedir prejuízos ao governo, estes mesmo Estados passaram ou estão tentando fazer passar leis que criminalizam cidadãos pelo direito de protestar ou de criticar um aliado estrangeiro.
Talvez ao invés de, preguiçosamente, defender algo como bom ou ruim – às vezes, contracepção, ou então vegetarianismo, ou bigodes – poderíamos julgar uma política pelos seus próprios méritos. E talvez seja possível evitar mais violência nas políticas de extermínio e repressão, ainda disseminadas nos Estados Unidos, não por sua origem nazista e sim porque, objetivamente, elas foram alarmantes e desastrosas.
Sobre os autores
é escritor da redação da Jacobin e mora em Toronto, Canada.