Será que a desigualdade econômica é mesmo uma questão importante? Se você perguntar a celebrados intelectuais como Steven Pinker (O novo iluminismo, Companhia das Letras, 2018) e Harry Frankfurt (Sobre a desigualdade, sem versão em português), eles dirão que não, que o que importa mesmo é que todo mundo tenha o suficiente. No entanto, se você parar para pensar, isso é ridículo, porque uma fortuna enorme não vai servir apenas para que você possa comprar todas as montanhas russas, mansões e bonequinhos do He-Man que possa desejar: ela possibilita que você compre poder.
Imagine uma sociedade pequena, com cerca de 10.000 pessoas, onde todo mundo ganha no mínimo uns R$5.000 por mês, exceto por uma pessoa, o Ricardo, que ganha R$2 milhões por mês. Agora, enquanto todo mundo estiver trabalhando em troca dos seus R$5.000, R$10.000 ou R$20.000, o Ricardo vai contratar um exército de lobistas que passarão o dia inteiro pressionando o governo para que este realize as mudanças que Ricardo deseja. Assim, lentamente, mas com toda certeza, a legislação vai começar a mudar de forma a garantir vantagens especiais às empresas do Ricardo, ao mesmo tempo em que os impostos que afetam o Ricardo começarão a cair, enquanto os impostos que afetam todas as outras pessoas começarão a aumentar para compensar. Contudo, esse processo só pode ir até certo ponto, então os recursos para os serviços públicos terão de passar por cortes – serviços que o Ricardo não usa, como a educação pública, a saúde pública, o transporte público.
Agora, não importa se a razão para que as pessoas estejam ganhando R$5.000 ou R$10.000 por mês seja alguma espécie de programa do governo ou um mercado que por um passe de mágica segue continuamente pujante, podemos ter certeza de que Ricardo odeia essa situação, porque se seus funcionários podem ganhar R$5.000 por mês em qualquer outro emprego, ou até ficando em casa jogando videogames, você vai precisar pagá-los mais que isso apenas para mantê-los, e vai precisar tratá-los com respeito, e oferecer benefícios e boas condições de trabalho, porque eles não terão medo de você, e sentirão que as opiniões e necessidades deles importam.
Portanto, você pode ter certeza de que o Ricardo vai fazer tudo o que estiver ao seu alcance para garantir que essa situação não persista. Assim, quando os trabalhadores já não tiverem garantidos os seus R$5.000 ou R$10.000 por mês, isso vai significar que se acabarem perdendo o emprego, podem ter de vender suas casas. E quem vai comprar essas casas? O Ricardo, porque ele pode pagar mais caro que qualquer outra pessoa por qualquer item de valor. Com o tempo, lentamente, Ricardo acumula cada vez mais casas, e cada vez mais empresas, e cada vez mais gente trabalha para a Ricardo Ltda., e cada vez mais gente mora em apartamentos alugados em uma das unidades do Altos do Ricardo, dirige um Rick Motors seminovo ou chama um RickDrive para chegar até o trabalho, e usam um opioide da Ricardo Química e Farmacêutica, e pagam por tudo isso usando seus cartões de crédito ou de presente de funcionários da Ricardo Ltda.
A essa altura você poderia esperar que as pessoas começassem a ficar furiosas com tudo isso e que fizessem algo para dar um basta nessa situação, mas como esperar que as pessoas compreendam todas essas lentas e complicadas alterações na legislação quando a maior parte da grande mídia é propriedade do Ricardo? Que tipo de reportagem você pode esperar sobre esses temas no Ricardo Diário, na Folha do Ricardo, na Gazeta do Ricardo, na RTV ou nos Portais ROL e R+? E que tipo de editores, repórteres e colunistas de opinião podemos esperar que esses veículos irão contratar?
No mundo real, o Ricardo não é uma única pessoa, mas uma pequena fração dentro do 1% no topo das grandes corporações, mas pesquisadores que têm estudado a desigualdade ao longo de toda a história humana (como Walter Scheidel em Violência e a história da desigualdade: da Idade da Pedra ao século XXI e Thomas Piketty em Capitalismo no século XXI) descobriram que assim como no mundo do Ricardo, a desigualdade tende a simplesmente seguir crescendo, até que a vasta maioria das pessoas esteja vivendo em nível de subsistência, recebendo apenas o suficiente para que possam continuar gerando riqueza para a minúscula minoria de pessoas que são proprietárias e que controlam todos os recursos, e que as coisas simplesmente permanecem nesse nível até alguma espécie de colapso civilizacional gigantesco, ou uma enorme guerra, ou algum tipo de revolução. A época após a Segunda Guerra Mundial na qual muitos de nós crescemos nos países mais ricos foi um dos períodos mais excepcionalmente prósperos e relativamente igualitários na história humana. Entretanto, hoje, depois de décadas de lobistas reescrevendo nossas leis e direcionando os mercados, estamos rapidamente deslizando de volta por aquela estrada rumo a algum mundo infernal futurista no estilo Mad Max nas mãos dos Ricardos, que é onde iremos parar em breve, se não fizermos nada para bloquear a desigualdade. Isso significa não apenas garantir que todo mundo tenha o suficiente, mas também que ninguém tenha demais.
Sobre os autores
What is Politics
("O Que é Política") é o podcast apresentado pelo @WorbsIntoWords, que além de produzir material de introdução à política é mestre em antropologia, militante anarquista, e atua como advogado de inquilinos em Montreal (Canadá).