Um tweet de um cara que se autodenominava “juba de nhoque”, recentemente se tornou viral, dizia mais ou menos assim:
Eu quando Bernie for presidente: Desculpe, não posso ir ao trabalho, estou muito ocupado jogando vídeo game.
Meu chefe: Tudo bem, você pode tirar um sabático para jogos, como a lei permite.
Eu: Foda-se.
Meu chefe: Desculpe, senhor.
Quem já teve um trabalho ruim (ou seja, a maioria dos trabalhadores) conhece o sentimento de querer dizer: “Foda-se, chefe”. O tweet foi engraçado porque nós temos as mesmas palavras na ponta da língua, mas não ousamos dizê-las. Mas por que não? Afinal, nas sociedades modernas, nós somos todos iguais, não? Nós temos o mesmo direito de votar ou de ser eleito, o mesmo direito de expressão, o mesmo direito de escolher qualquer trabalho que quisermos. Isso é capitalismo, afinal de contas, não feudalismo – ou a idade das trevas.
Marxistas dirão: bem, nossa liberdade na verdade termina na porta da loja, escritório, ou fábrica. Uma vez que você está no trabalho, o que você produz com o seu cérebro ou sua força não pertence a você – seu patrão paga um salário e se apropria do resto do valor que você produz como lucro dele. Porque ele pode. Porque ele é dono do negócio no qual você trabalha. E enquanto ele puder lucrar com isso, você possui um trabalho e, às vezes, quando o mercado de trabalho está aquecido, vão te chamar de algum título chique, como “parceiro”. Quando não há lucros, a “parceria” acaba – e o seu emprego também. É claro, sempre existe a alternativa de tomar coletivamente os meios de produção e ter uma fábrica socialistas dirigida pelos trabalhadores.
Isso é verdade. Mas há algo mais nesse tweet – e nossa (in)capacidade de dizer “foda-se” a nossos soberanos corporativos sempre que sentirmos a necessidade. O cientista político marxista Leo Panitch certa vez fez uma observação brilhante sobre essa liberdade de dizer “foda-se”. Ele não usa esses termos – pelo menos não em seus textos. Mas, ao explorar nossa liberdade de dizer o que quisermos, Panitch fez referências particularmente à revolução cultural de 1960 – ou, como a Fox News a chama, o colapso da civilização e da decência comum.
O que Panitch fez foi introduzir a economia política nas profundas transformações culturais dos anos 1960, as quais ele vivenciou em sua juventude. Introduzir materialidade ao aparentemente imaterial – a cultura – permitiu que ele identificasse a conexão entre a revolução cultural daquela época e políticas keynesianas de pleno emprego durante a Era do capitalismo fordista. Panitch apontou que novas liberdades vieram com essas políticas para a classe trabalhadora. Se seu patrão dissesse para você trabalhar mais intensamente, sem falar nas horas extras ou não remuneradas, você poderia simplesmente dizer, “Foda-se, eu não vou fazer isso” e “Claro, me demita, eu não me importo, porque, dobrando a esquina, eu vou encontrar outro emprego tão bom (ou ruim) que pague a mesma coisa”.
Pode parecer uma questão banal – talvez apenas com algum valor de uso histórico. Mas as implicações dessa observação para nossas vidas sob o capitalismo contemporâneo são, de fato, dignas de nota. Em essência, Leo Panitch apontou que o pleno emprego habilita os trabalhadores a dizer “foda-se, chefe”, sem temer as consequências. Em outras palavras, apenas o pleno emprego torna os trabalhadores livres o suficiente para sentir e agir como iguais.
Liberdade através do Socialismo
A observação de Panitch teve tremendas consequências para qualquer investigação cultural, histórica ou sociológica da revolução cultural da década de 1960. Qualquer estudo desse tipo provavelmente será falho se não levar em conta a economia política concreta do capitalismo.
A política de pleno emprego foi a base para mudanças culturais porque nivelou o terreno entre capital e trabalho. Ela promoveu a fundação material para que você fosse capaz de – pelo menos enquanto homem branco (dado o modelo fordista de homem provedor-da-família) – não dar a mínima, de deixar seu cabelo crescer, e de deixar o seu espírito correr livre. Isso também se aplica às mulheres trabalhadoras, que particularmente se beneficiaram do crescimento keynesiano dos empregos no setor público. Como Panitch escreveu, isso auxiliou na independência financeira das mulheres – geralmente oferecendo um caminho quando elas enfrentavam o abuso patriarcal de seus maridos.
A política keynesiana de pleno emprego foi a base material para a vontade de esperar mais da vida do que uma rotina de trabalho das 9h às 17h, e o mesmo tipo de trabalho até a morte. Foi a base material para a experimentação com drogas como uma forma de encontrar “o seu verdadeiro eu”, para viver “todo dia como se fosse o último”, e para ouvir o rock do fim dos anos 1950, o beat do início dos anos 1960, e a música psicodélica do fim da década de 1960 como uma expressão daquela busca particular por “um estado mental superior”. Sério, a próxima vez que você ouvir “Time of the Season” dos Zombies, “Happy Together” dos Turtles, ou “Revolution” dos Tomorrow, pense na política de pleno emprego.
Sexo, pleno emprego e Rock’n Roll
Estabelecer a conexão entre política de pleno emprego e “sexo, drogas e rock’n roll” não tem importância apenas histórica. Isso tem relevância crucial para nossas vidas atualmente. Assim como o teórico neo-gramsciano Stephen Gill apontou de maneira excelente, quando esses tipos de liberdades fordistas causaram um aperto nos lucros para o capital nos anos 1970, o monetarismo neoliberal – a mudança de políticas macroeconômicas orientadas pela demanda para políticas orientadas pela oferta – também foi uma maneira deliberada de disciplinar a classe trabalhadora ao reintroduzir o desemprego em massa.
Isso trouxe ansiedade – e mesmo terror – para aqueles que passaram a temer a perda de seus empregos. As reformas neoliberais do estado de bem-estar social durante os anos 1990 (como a Assistência Temporária para Famílias Carentes, nos Estados Unidos, e as reformas Hartz na Alemanha) complementaram esse medo com uma Espada de Dâmocles permanente: a humilhação do “bem-estar em troca de trabalho” e a perda de auto-determinação através de todo tipo de políticas sociais punitivistas.
Disciplinar a classe trabalhadora e projetar uma nova ética protestante do trabalho foi uma decisão consciente durante a virada neoliberal. Como Gil aponta em seu principal trabalho sobre a Comissão Trilateral, que pavimentou o caminho para a “globalização neoliberal”, a elite governante declarou que o problema da década de 1960 e do início dos 1970 era “democracia demais”. De fato, eles não gostavam da juventude leitora de Marx, que escrevia poesia, tocava guitarra, fazia amor e fumava maconha. Na Alemanha Oriental, o ex-nazista Helmut Schelsky (que se tornou um proeminente sociólogo alemão conservador) ajudou a fomentar uma influente crítica contra a “rede social”. Esse termo era usado para condenar, deslegitimar, e desmantelar o estado de bem-estar social ao chamar atenção para algumas maçãs podres que injustamente tiravam vantagens do sistema.
Nesse sentido, culturalmente falando, a música punk da metade ao fim dos anos 1970 pode até ser considerada expressão do fim do pleno emprego keynesiano, combinado com um estado de bem-estar ainda robusto: “somos supérfluos, não valemos nada, e temos orgulhos disso!”. Podemos não ter muito, mas estamos indo bem com aquilo que o estado de bem-estar provê, então lide com meu moicano e foda-se!” De maneira análoga, alguém pode concluir que a absorção corporativa da música underground depois do grunge, nos anos 1980, a estética atroz do pós-grunge, e a precariedade da música avant-garde e experimental desde então foram expressões daquilo que Bill Clinton afirmou como “fim do estado de bem-estar como o conhecemos”. Então da próxima vez que ouvir o “foda-se” a sociedade, do Sex Pistols, pense na política financeira monetarista e um estado de bem-estar ainda funcionando. E da próxima vez que pensar no horror que é o Creed ou nas dificuldades econômicas de artistas experimentais brilhantes como o nova iorquino Marnie Stern, pense: “Foda-se, Bill Clinton!”
Garantia de emprego, sim, por favor
Mas a observação histórica de Panitch pode também ser relevante para nossas vidas hoje. O tweet atrevido do Juba de Nhoque indica quais novas liberdades as políticas de esquerda e socialistas poderão e irão trazer à classe trabalhadora. Quais potenciais seremos capazes de desenvolver, se e quando coisas como o programa federal de garantia trabalho, de Bernie Sanders, for realmente definido.
Não foi apenas a experiência das políticas keynesianas de pleno emprego que mostraram como a falta de medo de perder o emprego aumentou a liberdade de expressão para que você diga o que está na sua cabeça – uma válvula de segurança paradoxal, mesmo naquilo que são corretamente consideradas sociedades altamente não-livres. O novelista da Alemanha Oriental, Ingo Schulze – considerado por muitos como o novo Günter Grass, dado a sua proeminência pública -, relembra como ele nunca teve tanto medo dos funcionários do partido antes de 1989 quanto do patão rico no armazém local de sua cidade pequena quando ele encontrou o capitalismo alemão.
Ou tome o alto nível de ingestão de bebida alcoólica na antiga Alemanha Oriental, como explorado em um estudo financiado pela Fundação Konrad-Adenauer – fundação política associada com a União Democrática Cristã, de Angela Merkel. Tendo em vista as políticas conservadoras do instituto, alguém poderia esperar que esta pesquisa concluiria que as pessoas bebiam mais por causa da falta de liberdade, da falta de muitos bens de consumo, e do sofrimento geral sob uma “ditadura socialista”.
Entretanto, ela chegou a uma conclusão bem diferente: as pessoas bebiam mais simplesmente porque eles podiam! Elas tinham mais tempo de lazer, menos pressões no ambiente de trabalho, e nenhum medo de que os esquemas racionalizantes do capitalismo, a falta de lucro, ou as crises capitalistas pudessem arrancar seus empregos. “A razão” pela qual as pessoas apresentaram tal consumo elevado de álcool, concluiu o autor Thomas Kochan, foi “a experiência de uma comunidade coletiva com pouquíssimas rivalidades competitivas” e “a despreocupação existencial, além da vida em um mundo cujas limitações eram compensadas com riqueza em tempo de lazer”.
Arrepios
Um tweet bobo, portanto, aponta para questões realmente fundamentais. Ele ressalta como o socialismo não é oposto à liberdade, mas, ao invés disso, como o socialismo é – ou poderia e deveria ser – sua pré-condição. Porque o socialismo significa que a liberdade capitalista de explorar e oprimir, incluindo exploração sexual no ambiente de trabalho, será substituída pela liberdade que apenas o socialismo pode oferecer. Não ter medo de dizer “foda-se” quando o patrão nojento do restaurante coloca a mão na sua bunda e te propõe um emprego em troca de favores sexuais A garantia de emprego e outras medidas socialistas eliminarão o medo de desemprego e ajudarão a nivelar o desequilíbrio estrutural entre capital e trabalho. Elas transformarão igualdades políticas e formais em igualdade social e econômica de fato.
Liberdade através do socialismo também significa a mudança da mera “liberdade de” (não ser agredido pela polícia, ser não ser detido sem base legal, etc) para “liberdade para” (fazer coisas que você realmente quer e deseja), como o filósofo da década de 1960, Herbert Marcuse, coloca em seu livro “Homem Unidimensional”
Por exemplo, a ausência de taxas nas universidades nos livraria de ter que escolher – contra nossas paixões e interesses – por um diploma de administração ao invés de um diploma em história (e atualmente, apenas crianças ricas das universidades da Ivy League podem pagar para estudar história). Da mesma forma, a demanda de Bernie Sanders pela gratuidade das universidades e cancelamento dos débitos estudantis libertaria as pessoas de precisar de postos lucrativos em direito comercial e destruição de sindicatos ao invés de trabalhar com leis trabalhistas e defesa de direitos dos trabalhadores, só porque as malditas dívidas precisam ser pagas.
Resumindo, a promessa do socialismo é que não seremos mais unidimensionais, mas multidimensionais, seres humanos plenos. Os anos 2020 poderiam ser como os anos 1960 de novo. Bem, talvez sem os círculos de tambores e as camisas tie-dye, mas o espírito seria o mesmo. E com os círculos de tambores e camisas tie-dye para aqueles que insistissem.
E, claro (retornando para a observação inicial de Leo Panitch), as políticas keynesianas de pleno emprego ficam muito aquém do socialismo. Em certa medida, elas excluíam mulheres e, quanto mais começaram a falhar, cada vez mais os imigrantes, e elas eram fundamentadas em um sistema patriarcal de exploração do trabalho reprodutivo e opressão da mulher. A situação da Guerra Fria que deu nascimento a esse compromisso histórico muito particular entre capital e trabalho no Ocidente também não vai voltar – nem deveria.
A liberdade socialista da ansiedade se estenderá mais ainda em duas direções. Primeiro, temos aprendido que o capitalismo só pode ser democratizado até certo ponto. Eventualmente, como na crise fordista (1967-79), a recém adquirida liberdade dos trabalhadores de dizer “foda-se” aos seus patrões minguou os lucros do capital e confrontou a esquerda com a alternativa de ou plena socialização dos meios de produção e a tomada da principal fonte de poder do capital ou permitir que o capital restabelecesse a disciplina capitalista sobre os trabalhadores através do monetarismo e do projeto de classe de globalização. Posteriormente, isso levou à virada neoliberal dos anos 1970 – um erro que não deveriamos cometer duas vezes.
Segundo, é verdade que as políticas keynesianas de pleno emprego aliviaram o medo das massas do desemprego e permitiu que os boomers deixassem seus cabelos crescer. Ainda assim, a razão para a revolta da juventude era a experiência alienante do trabalho, como ainda é depois dos anos 1960. Isso só vai acabar com a democratização dos ambientes de trabalho, quando os próprios trabalhadores tomarem decisões sobre o quê, quando e como produzir. Mais ou menos como o Ato pela Democracia no Ambiente de Trabalho, de Bernie Sanders.
Contudo, a liberdade que existia por causa do pleno emprego – o direito a um emprego – mesmo limitado como era (em sua maioria para homens brancos e mulheres trabalhando no setor público), é algo que vale a pena lembrar. Isso pode nos libertar do que o co-autor de Leo Panitch, Sam Gindin, chamou de grande vitória do neoliberalismo – nomeadamente “a diminuição das nossas expectativas” do que é uma vida boa, do que é uma vida que valha realmente a pena viver. Ao invés disso, precisamos de uma vida em que possamos dizer “foda-se” a quem tivermos vontade – e “eu te amo” também. Especialmente isto.
Sobre os autores
é pesquisadora no Instituto de Análise Social Crítica da Fundação Rosa Luxemburgo, em Berlim.
[…] de horários do dia-a-dia, os códigos de conduta, os trajes obrigatórios, as restrições à liberdade de expressão. Não é à toa que Douglass acrescentou: “À medida que o trabalhador se torna mais […]