“Nas veias do meu filho corre o sangue dos rebeldes irlandeses” – quem disse isso foi Ernesto Guevara Lynch, pai do lendário Che Guevara, que tinha orgulho de suas raízes irlandesas e de como sua família construiu uma nova vida na Argentina, depois de fugir da Irlanda durante a era Cromwell.
O sangue rebelde dos irlandeses foi essencial nas lutas emancipatórias da América Latina – e até hoje é. Latinos e Irlandeses lutam juntos contra o imperialismo desde o século XIX, quando os imigrantes irlandeses, fugindo da fome e da opressão provocados pelo Império Britânico, encontraram na América Latina um novo campo de batalha para desafiar a crueldade do colonialismo.
Muitas das repúblicas do nosso continente contaram com a contribuição dos Irlandeses e seus descendentes, como o Chile com Bernardo O’Higgins ou os irlandeses presentes no exército bolivariano. A recíproca também é verdadeira– lembremos do irlandês-argentino Éamon Bulfin: foi ele, nascido em Buenos Aires, que hasteou a bandeira republicana irlandesa no Correio Central durante a Revolta da Páscoa em 1916.
Che, o irlandês
O mais famoso “representante irlandês” e personagem central da revolução cubana foi Ernesto Che Guevara: seus ancestrais celtas, os Lynches, sofreram nas mãos do inglês Oliver Cromwell, o homem que derrubou a monarquia e instituiu seu próprio controle da Inglaterra por vários anos.
Os membros da família fugiram da Irlanda e foram para a Espanha, partindo mais tarde para a Argentina, quando o país ainda era uma colônia espanhola. Inclusive, o bisavô de Che lutou na Guerra da Independência contra a Espanha em meados do século XIX. Os Lynch tinham em si um espírito de liberdade, e assim como outros membros da diáspora irlandesa, eles nutriam laços importantes pela terra de seus ancestrais, embora o revolucionário tenha passado apenas um dia de sua vida inteira na Irlanda.
Um voo da Aeroflot com destino a Havana, vindo de Moscou, foi desviado pela neblina no aeroporto de Shannon. O avião parou para reabastecer, mas não conseguiu decolar devido ao nevoeiro. Durante sua rápida visita, Che disse que estava orgulhoso de sua ascendência irlandesa e conexão irlandesa, disse que os irlandeses derrubaram o Império Britânico, se referindo à Guerra da Independência da Irlanda, travada de 1919 a 1921.
Cuba e a solidariedade internacional à Irlanda
Esses laços não ficaram apenas na história ancestral. Fidel Castro se tornou um revolucionário durante seu tempo como organizador político estudantil na universidade de Havana, inspirado em Julio Antonio Mella, conhecido fundador do Partido Comunista Cubano.
Mella era combativo e foi para o exílio no México depois de se tornar uma ameaça à sangrenta ditadura do presidente cubano Gerardo Machado e lá se mobilizou com outros comunistas. A mãe de Mella, Cecilia McPartland, nasceu na Irlanda, portanto, um dos maiores heróis da história cubana que inspirou os revolucionários cubanos da década de 1950 era de ascendência irlandesa.
Em 1981, quando prisioneiros republicanos irlandeses estavam no meio de uma greve de fome histórica contra o Estado britânico, foi Fidel Castro quem mais uma vez se aliou aos oprimidos.
A greve de fome foi o resultado de uma batalha de cinco anos entre os nacionalistas irlandeses e a autocracia britânica, deflagrada após Margaret Thatcher destituir os republicanos de seu status de prisioneiros políticos. Liderados por Bobby Sands, parlamentar eleito e membro do Exército Republicano Irlandês Provisório (IRA), um a um, os prisioneiros começaram a recusar comida. Dez grevistas, incluindo Sands, morreram de fome.
Tumultos estouraram na Irlanda do Norte, com milhares protestando indignados. Thatcher não se comoveu, mas Castro sim. O cubano se encontrou com Gerry Adams em 1981, então líder do Sinn Fein (Nós Mesmos, em gaélico irlandês), o centenário partido independista irlandês de esquerda, e falou com paixão sobre a causa republicana:
Ao falar de política internacional, não podemos ignorar o que está acontecendo na Irlanda do Norte. Sinto que é meu dever referir-me a este problema. Na minha opinião, os patriotas irlandeses estão escrevendo um dos capítulos mais heróicos da história. Eles pedem apenas algo tão simples como o reconhecimento do que eles realmente são: prisioneiros políticos… Que os tiranos tremam diante de homens que são capazes de morrer por seus ideais.
O líder do Sinn Féin viajou para Cuba nesse mesmo ano e inaugurou um monumento em homenagem aos dez mortos na greve de fome. Aaron James Kelly, coordenador irlandês da Rede em Defesa da Humanidade diz que:
Há um mérito justificável e demonstrável na placa comemorativa que adorna La Calle O’Reilly em Havana com as palavras “dois povos insulares no mesmo mar de luta e esperança” Cuba e Irlanda sofreram os danos causados pelos impérios. Cuba, mantendo seu internacionalismo e humanitarismo incomparável em todo o planeta, foi um apoiador crucial da luta contra o imperialismo britânico na Irlanda e, de fato, é agora um amigo-chave do Processo de Paz e da próxima etapa dessa luta.
Em particular, a solidariedade demonstrada durante as greves de fome e em seu rastro pelo povo cubano foi e é notável por seu compromisso inquebrantável. Do lado irlandês, foram os movimentos da classe trabalhadora, anti-imperialistas e republicanos irlandeses que retribuíram essa solidariedade.
Ao contrário do sucesso da Revolução Cubana, que eu consideraria a mais importante de todas as revoluções no século passado por causa de seu ethos anticolonial profético e a importância mundial de seus valores orientadores e ações subsequentes, a Guerra da Independência na Irlanda foi uma revolução paralisada ou interrompida que foi eclipsada por forças reacionárias. Não apenas por causa da presença contínua do domínio britânico no estado do norte, mas também por causa da hegemonia exercida por fascistas e conservadores no estado do sul.
A atração dos Estados Unidos e da União Europeia (imperialistas, em outras palavras) é forte e é particularmente desprezível que as pessoas de uma ilha que foi deliberadamente morta de fome pelo império britânico durante An Gorta Mór (A Grande Fome) agora com alegria e perversidade em nome da degradação das palavras ‘direitos humanos’, apóie o imperialismo norte-americano e seu uso da fome como arma de guerra no bloqueio ilegal e criminoso de Cuba.
Reagan vai à Irlanda
Em algum momento entre 1979-80, Ronald Reagan estava fazendo campanha para a eleição presidencial nos Estados Unidos. Na Califórnia, Reagan conheceu o então embaixador irlandês nos Estados Unidos, Sean Donlon, este último puxando conversa sobre as raízes do nome do candidato à presidência.
“Você deve ser irlandês”, disse Donlon a Reagan, “de que parte da Irlanda você vem? […] com um nome como Reagan, você tem que ser irlandês”. Reagan, no entanto, se vendeu à população americana como um WASP – um protestante branco de origem anglo-saxã.
Relembrando sua conversa com o futuro presidente, Donlon afirmou mais tarde que “quando eu disse a Reagan, próximo da da eleição, que suas raízes eram definitivamente irlandesas e não inglesas, ele perguntou se essa informação poderia ser mantida em sigilo até depois da eleição […]. ão queria mudar seu pacote no último minuto”.
Quatro anos depois, patrocinando brutais operações de contra-insurgência em toda a América Central, Reagan foi à Irlanda em visita oficial. Vários grupos irlandeses planejaram “piquetes ininterruptos” contra as políticas de Reagan sobre armas nucleares e seu apoio aos Contras na Nicarágua.
O governo irlandês estava tão preocupado com uma recepção hostil a Reagan que apresentou uma nova legislação apenas 90 minutos antes de sua chegada, e então a usou para cercar 30 manifestantes fora da residência do embaixador dos Estados Unidos.
Quando o presidente chegou ao aeroporto de Shannon, foi imediatamente saudado por piquetes. E uma vez na cidade de Dublin, um grupo de freiras liderado pelo Convento das Irmãs pela Justiça “carregou um caixão com os nomes de três freiras americanas assassinadas em 1980 junto a um trabalhador católico por guardas nacionais em El Salvador”. O grupo também entregou uma petição ao Ministério das Relações Exteriores da Irlanda, assinada por 20 mil pessoas, em solidariedade ao povo da América Central.
Reagan, que já havia renunciado às suas raízes irlandesas, encontrou um país mais do que preparado para renunciar às suas políticas brutais na América Latina.
Irlanda, o país de Roger
Na manhã da Sexta-feira Santa de 1916, Roger Casement foi capturado em Banna Strand, Kerry, segurando quase dois mil rifles destinados ao uso no Levante de Páscoa da Irlanda contra a ocupação britânica. Casement tinha sido um Cavaleiro do Reino e diplomata sênior de longa data do Ministério das Relações Exteriores britânico, desanimando seus captores com o que consideraram um comportamento traiçoeiro.
Condenado à morte por suas ações, fez um discurso do cais que ressoou em todo o mundo. Falando sobre o uso de soldados irlandeses durante a Primeira Guerra Mundial, Casement proclamou:
Se as pequenas nacionalidades fossem os peões nesse jogo de gigantes em batalha, não haveria razão para a Irlanda derramar seu sangue por qualquer outra causa que não a dela, e se isso for traição além dos mares, não tenho vergonha de confessar ou para responder por isso aqui com minha vida. Onde todos os seus direitos se tornam apenas um erro acumulado; onde os homens devem implorar com a respiração suspensa por licença para subsistir em sua própria terra, para pensar seus próprios pensamentos, para cantar suas próprias canções, para colher os frutos de seu próprio trabalho – e mesmo enquanto eles imploram, para ver as coisas inexoravelmente retiradas deles Então certamente é uma coisa mais corajosa, mais sã e mais verdadeira, é ser um rebelde em atos e ações contra tais circunstâncias do que aceitá-las mansamente como o destino natural dos homens.
O anti-imperialismo de Casement não começou durante a luta pela independência da Irlanda. Apenas seis anos antes, Casement havia sido despachado para o Putumayo – então um território disputado na fronteira amazônica do Equador, Peru e Colômbia – para investigar os supostos crimes da Peruvian Amazon Company (PAC), uma empresa de borracha de propriedade britânica.
De acordo com reportagens da revista inglesa Truth, a PAC havia “forçado os indígenas pacíficos de Putumayo ao trabalho escravo em troca da comida necessária para mantê-los vivos”, e usou um grupo de barbadianos (súditos britânicos) para alocar coerção. Essas histórias de condições análogas à escravidão encontraram ressonância particular na Grã-Bretanha, e Casement, então cônsul britânico no Rio de Janeiro, foi enviado para investigar o caso. Em Putumayo, encontrou um espaço horrível de exploração colonial; ele estimou que 40 mil indígenas morreram desde o início da coleta de borracha pelo PAC.
Embora servisse à coroa britânica, Casement viu as lutas dos povos indígenas de Putumayo em termos comparáveis aos de sua terra natal, a Irlanda. Ao encontrar um proprietário de escravos no noroeste do Peru chamado Andres O’Donnell, observou: “E pensar que um nome tão grande poderia descer tão baixo!”
Na verdade, a decisão de Casement de se colocar ao lado dos “colonizados” – seja no Congo, no Putumayo ou em Connemara – selaria seu destino; ele foi enforcado na prisão de Pentonville, em Londres, em 3 de agosto de 1916. Mais de um século após sua morte, no entanto, Casement ainda é lembrado em todo o Putumayo. Quando o Padre Brendan Forde, de Clontarf, viajou pela primeira vez ao sul da Colômbia, um século depois, ele foi chamado pelos habitantes locais como: “Padre Brendan da Irlanda, país de Roger”.
Esse compartilhamento de lutas, revoluções e revolucionários entre latinos e irlandeses não é apenas histórico, o parlamentar irlandês representante de South Down, Chris Hazzard, é um dos que mantém essa ponte entre os povos em seu partido, o Sinn Féin.
E ao ser perguntado sobre o porquê é importante que latinos e irlandeses se mantenham unidos, ele é categórico:
O internacionalismo sempre esteve no cerne do republicanismo irlandês; na verdade, o próprio republicanismo irlandês é um produto de ideias e influências internacionais. Sempre tivemos orgulho de nos posicionar firmemente contra o colonialismo e o imperialismo na Irlanda e em todo o mundo, incluindo a América Latina. O Sinn Féin continua orgulhosamente a promover essa tradição radical hoje. A solidariedade internacional e nosso trabalho internacional contínuo são componentes-chave de nossa luta pela libertação nacional. Ao longo da história da luta pela independência da Irlanda, os revolucionários irlandeses deram e receberam de outros muita solidariedade na causa comum da libertação nacional e social.