Trecho do livro Arquitetura de Arestas: As esquerdas em tempos de periferização do mundo, de Edemilson Paraná e Gabriel Tupinambá (Autonomia Literária, 2022).
Tornou-se bastante comum falar, atualmente, em desconfiança e crise dos modos ou “modelos tradicionais de política”. O que se perde de vista neste enfoque, no entanto, é o que de fato estamos dizendo quando falamos em “modelo” – algo que está para além de uma mera descrença nos políticos ou em certos instrumentos de representação política. Porque um modelo — no contexto das esquerdas — é mais do que isso: inclui não apenas uma certa forma de agir, mas também a concepção de tempo e espaço no qual essa ação se dá. Trata-se, em certo aspecto, daquilo que Fredric Jameson chamou de “mapeamento cognitivo”, expressão emprestada do urbanista Kevin Lynch, que por sua vez investigou como mapeamos, em nossas cabeças, as cidades que conhecemos; um mapa mental que contribuiu não apenas para nossa orientação no espaço urbano, mas também para organizar as fantasias sobre a cidade e definir que trajetos e que possibilidades esse espaço oferece.
Portanto, uma coisa é ter clareza sobre o terreno, sobre onde se quer chegar, e se concluir, a partir disso, que não é mais possível confiar que certos caminhos nos levem até lá – uma desconfiança produtiva, digamos, pois ajuda a afunilar a escolha a respeito de quais táticas são mais apropriadas para um dado objetivo –, outra é esbarrar em algum obstáculo significativo que não estava antecipado no mapa, algo que coloca em questão a precisão da cartografia do território como um todo. O que fica comprometido nesse segundo caso é muito mais do que a confiança em um instrumento político (a crença nos partidos, nas campanhas eleitorais etc.), mas a consistência de todo um modo de visualizar o espaço político, suas causas e efeitos, suas determinações.
“Trata-se de uma versão terrível daquelas piadas do tipo ‘eu tenho uma boa e uma má notícia’: a boa notícia é que o Brasil é mesmo o país do futuro; a má notícia é que são os outros lugares que tendem a se parecer cada vez mais com o Brasil.”
Além de comprometer a capacidade de decidir onde se deve investir energias e de avaliar se tais intervenções tiveram sucesso, uma crise de mapeamento cognitivo também produz efeitos subjetivos importantes: ao afetar a capacidade de localização nesse espaço, nos impede de elaborar o sofrimento que a vida política causa, dado não ser possível capturar sua lógica em uma narrativa que torne comensuráveis as causas de tal sofrimento – muitas vezes abstratas e complexas – e seus efeitos pessoais e corporais.
Assim é que, dependendo de onde se coloca a ênfase – na saturação de um dado meio ou mediação, ou na saturação do modo de mapear os meios e fins da política – formam-se cenários muito diferentes. Desde essa perspectiva, o problema da “crise de representação política”, precisaria ser, então, reformulado da seguinte forma: que processo é esse que levou o nosso mapeamento cognitivo do espaço político a se tornar, de repente, incapaz de figurar as forças, os atores e os regimes de causa e efeito cuja inteligibilidade é condição para pensar e agir politicamente?
Crise estrutural no final de um ciclo
Uma forma produtiva de abordar esse problema é seguindo a linha de investigação do filósofo brasileiro Paulo Arantes, que há muito tempo estuda as condições materiais para que haja uma experiência política da história. Uma de suas teses é a de que vivemos, no Brasil, o fim de um ciclo desenvolvimentista cujo fio condutor amarrava tanto o projeto político da ditadura civil-militar quanto aqueles que disputaram o poder posteriormente. Ou seja, o que vivemos não é apenas a saturação de uma orientação particular no espaço político – mais à direita ou mais à esquerda – mas de uma premissa subjacente, até agora relativamente lastreada na realidade socioeconômica mundial, que justificava a associação entre desenvolvimento econômico e as demais esferas da vida social.
Na contramão de muitos autores, principalmente americanos e europeus, que interpretam o fechamento de nossa imaginação política – a chamada “era das expectativas decrescentes” – como um sinal da hegemonia discursiva neoliberal, a ser combatida nos mesmos termos, ou como uma resposta psicopatológica individual, a ser tomada como sinal de um predicamento ideológico, Arantes reconhece aí uma transformação subjacente na própria estrutura do sistema-mundo capitalista. Em poucas palavras: a associação fundamental entre trabalho e progresso, que subjaz tanto o processo de consolidação quanto de expansão da sociedade do trabalho, e que caracteriza tanto a “fase imperialista” do capitalismo quanto os projetos alternativos que se consolidaram durante o século XX, começa a entrar em uma crise estrutural: ao invés de absorver cada vez mais pessoas sob um certo paradigma de trabalho formal, assistimos a um divórcio cada vez maior entre o progresso técnico e a empregabilidade.
“Impõe-se por toda a parte, conforme bem observou Mark Fisher, o “realismo capitalista” da falta de alternativas.”
Ao invés do processo de expansão tendencial do centro para as periferias – onde o “choque de modernidade” teria produzido, provisoriamente, sociedades em que se misturam regimes normativos incompatíveis, informalidade e emprego formal, refuncionalizando o “atraso” das instituições em nome das mais avançadas formas de exploração, etc. – ou mesmo de um parasitismo mais ou menos estável da periferia pelo centro. São esses regimes híbridos e periféricos que agora avançam sobre o centro, carregando mundo à dentro essa forma de viver na arquibancada do progresso. Trata-se de uma versão terrível daquelas piadas do tipo “eu tenho uma boa e uma má notícia”: a boa notícia é que o Brasil é mesmo o país do futuro; a má notícia é que são os outros lugares que tendem a se parecer cada vez mais com o Brasil.
Em suma, se assistimos hoje, em grande parte por conta das desventuras das formas presentes de acumulação capitalista, a um processo de “periferização do mundo”, então ao mesmo tempo em que essa situação se alastra pelo globo, ela também desfaz a nossa capacidade de tomar os países ditos “desenvolvidos” – ou mesmo a crítica do processo de expansão imperialista – como modelo do que fazer para “sair do atraso”. Na verdade, desfaz até mesmo nossa capacidade de saber se “sair do atraso” é, de fato, um bom critério de orientação política. A crise do “modelo tradicional” de política é portanto, o efeito de um movimento profundo no “Acheronta” do sentido histórico moderno: ela não desnorteia apenas a esquerda progressista, mas também o liberalismo e as forças reacionárias, colocando a todos, em certo aspecto, no mesmo barco, dado que estamos todos igualmente investidos na fantasia de que a aventura moderna teria um combustível infinito para queimar.
Plataformização e financeirização da vida
O capitalismo passou, nas últimas cinco décadas, por mudanças profundas, definidas, em larga escala, pelos processos de reestruturação e transnacionalização produtiva, financeirização e neoliberalização, que avançam com maior intensidade a partir das décadas de 1970 e 1980. No que toca a reflexão desenvolvida neste livro, fala-se de um rearranjo dos mecanismos de controle do trabalho e do curso produtivo, agora tendencialmente “flexíveis” e “acelerados”, de transformação nos paradigmas administrativos e de gestão da grande empresa capitalista, de uma maior integração entre as cadeias de valor, da constituição de novos hábitos e padrões de consumo globais, da ampliação da “autonomia relativa” da esfera financeira em relação à produção.
Sai de cena o “regime de acumulação keynesiano-fordista” do “capitalismo administrado” do pós-guerra – com sua produção e consumo de massas, relativo controle dos fluxos monetários-financeiros e gestão coletiva (tripartite: Estado, sindicatos e empresas) da relação salarial – e entra o “regime de acumulação com dominância da valorização financeira” ou “regime de acumulação flexível” – guiado pela liberalização dos fluxos de capitais, da relação salarial e da proteção social, pela produção e consumo crescentemente modulares e customizados e pelo avanço da lógica e temporalidade financeira no governo da dinâmica socioeconômica como um todo. Esta “financeirização”, que alça a outro patamar de comando o que Karl Marx chamou de “capital fictício”, torna-se a ponta de lança deste processo de globalização econômica que possibilita redesenhar e ampliar significativamente o mercado mundial capitalista.
Plataformização e financeirização são, é preciso que fique claro, duas dimensões complementares de um mesmo processo de mudança macroestrutural do capitalismo nas últimas décadas. Compreender este aspecto nos permite enxergar para além das baixas taxas de crescimento econômico mundial, da falta de dinamicidade em termos de ampliação da produtividade, do aprofundamento das desigualdades, para além, em suma, do que há de mais imediato e visível na dita “estagnação secular”, como tem sido definida a macro-conjuntura econômica contemporânea – um contexto em que, paradoxalmente, o poder do dinheiro revela-se, ao mesmo tempo, imenso e insignificante. Imenso ao postergar e manter de pé a dança das cadeiras do financismo zumbi, mas insignificante na ativação do emprego, do consumo e da produção na economia real.
“Tanto no Brasil, quanto em outros lugares do mundo, a seguinte dinâmica vem se repetindo: quanto mais acusam políticos como Bolsonaro ou Trump de não respeitarem a democracia, mais aderência social eles adquirem.”
É que a compulsiva “antecipação do futuro no presente” – típica da predominância de um modo de valorização de capital ancorado na posse de títulos de propriedade cujo “valor” se sustenta primariamente na especulação sobre a sua rentabilidade futura, potencial, e apenas secundariamente na lucratividade efetivamente auferida no presente – estrutura, na prática, um Estado de exceção econômica, de crise permanente, cujas apostas se dão sempre à beira da nova derrocada que se avizinha. Na prática, a imposição, por todos os limites da vida econômica, da temporalidade curto-prazista, desregulamentadora e desterritorializante da finança, faz comprimir violentamente o horizonte da valorização de capital – e, com ele, o próprio horizonte de expectativa social, a capacidade de imaginação e criação política. Impõe-se por toda a parte, conforme bem observou Mark Fisher, o “realismo capitalista” da falta de alternativas.
Por essa razão, dentre outras, é que não adianta continuarmos a mapear o mundo do mesmo jeito, seja para entender o movimento dos demais atores políticos, seja para representar nossa própria posição, simplesmente buscando novas ferramentas para realizar os mesmos velhos sonhos. Teremos de reaprender a sonhar novamente.
Democracia liberal em cheque
Em paralelo à crise do modelos de representação do espaço político, observamos também uma encruzilhada que abarca duas formas de ler o que vem sendo definido em toda a parte como a “crise da democracia”. A primeira abordagem define a crise como efeito de um déficit de representação: a democracia está em questão porque se desfez o laço que articulava tradicionalmente representados e representantes, de modo que há agora um grau maior de arbitrariedade entre a classe política e a população. A segunda abordagem parte da constatação de um excesso: a crise advém do fato de que, ao contrário das expectativas, a expansão da democracia deu lugar a pessoas cuja forma de vida não é compatível com a plataforma democrática — ao invés eliminá-las do jogo, transformando-as em cidadãos por meio da educação e do desenvolvimento social.
Apesar de mais aceita, não é mandatório que nos apeguemos à conhecida interpretação dessa crise como o sinal de um fracasso de representação. Podemos, ao invés disso, conceber o escândalo em face do comportamento de uma certa parcela da atual classe política — pensemos, entre outros, em Donald Trump, Jair Bolsonaro e seus congêneres — como mais um efeito do processo anteriormente descrito: a lenta marcha dos “sem-história” história à dentro, um efeito da generalização da disformia periférica por toda a parte.
De fato, esses “penetras” trazem para a cena uma certa “vulgaridade” que não reconhece os ritos democráticos como um espaço sagrado, pleno de sentido histórico; mas também trazem à tona, talvez contra a nossa vontade, as condições efetivas de qualquer projeto político contemporâneo, dado que esse predicamento socialmente trincado é o que parece nos esperar a todos, de uma forma ou outra. Reside aí, então, uma das razões de porque quanto mais os defensores da “verdadeira” democracia denunciam e se escandalizam com esses novos atores políticos, mais eficácia esses parecem demonstrar para representar a disformia social.
Tanto no Brasil, quanto em outros lugares do mundo, a seguinte dinâmica vem se repetindo: quanto mais acusam políticos como Bolsonaro ou Trump de não respeitarem a democracia, mais aderência social eles adquirem; quanto mais desqualificados são por seus adversários em razão de sua vulgaridade, mais qualificados eles se tornam para encarnar essa nova face do conflito social. Assim é que a desqualificação de alguns representantes políticos funciona, em uma situação como essa, paradoxalmente, como reforço de sua eficácia.
“Isso nos confronta com a possibilidade paradoxal de vivermos um período de intensa resistência, com uma multiplicação das frentes de luta, sem que isso acarrete em um efetivo acúmulo de força social.”
A esse respeito, tornou-se corrente em alguns círculos intelectuais de esquerda definir o assim chamado “populismo de direita” seguindo, por exemplo, a teoria do populismo do Ernesto Laclau, como o caso de um líder que é capaz de aglutinar insatisfações as mais diversas sob a égide de um “significante vazio” ligado a um inimigo a ser exterminado. Esse significante, ou palavra-de-ordem, circularia simbolicamente como um atrator para todos os tipos de demanda social, mesmo aquelas contraditórias entre si. O problema é que essa teoria não dá conta de explicar porque que, como dissemos, quanto mais se denuncia a incapacidade e a impotência do líder, mais ele parece uma figura aceitável.
Se o líder não sustenta a tal palavra-de-ordem – ou seja, uma hora fala uma coisa, depois outra, se nem mesmo se habilita a encarnar direito essa representação – como é que ele pode dar “significância” a esse emblema? Isso indica que a força desse tipo de figura não advém da capacidade do seu discurso em produzir um “equivalente geral” das demandas sociais, mas justamente da sua capacidade de tornar inteligível que a lógica da representação não funciona mais. Lembremos que, em um dos primeiros debates na TV de Donald Trump, quando o empresário ainda disputava a posição dentro do Partido Republicano, ele admitiu em rede nacional, para o horror tanto da esquerda quanto da direita, que havia doado dinheiro para a campanha de todos os outros candidatos ali presentes. Por um lado, isso configura um constrangedor deboche do rito democrático, mas por outro é uma forma de sustentar que o poder está, de fato, ancorado em outro lugar.
Do ponto de vista daqueles que acreditam que a democracia representativa é, essencialmente, todo o espaço político, estar “fora” do espaço democrático significa se colocar na posição de soberano, acima ou fora da lei. Mas, para a maioria das pessoas, esse “outro lugar” costuma ser um espaço muito bem definido, com suas leis próprias: no caso de Trump, é o mercado e o mundo empresarial. Se não considerarmos que há uma diferença, de um lado, entre estar com um pé fora do jogo democrático porque nos colocamos fora de toda lei ou, de outro, porque estamos com o outro pé em um regime normativo distinto, vamos colocar todos esses líderes “populistas” sob a mesma definição, deixando de notar uma diferença significativa entre aqueles – normalmente de esquerda – que estão com um pé na lei e outro na História com “H” maiúsculo, enquanto que outros extraem sua eficácia como representantes justamente da posição bífida que ocupam como pessoas privadas: Marcelo Crivella, um pé no palanque, outro no púlpito; João Dória, um pé lá e outro na fortuna privada; Jair Bolsonaro, um pé na candidatura e outro nas forças policiais e de segurança, etc.
Estar dividido entre múltiplas leis é diferente de estar fora da lei. Não se quer dizer com isso que se trate de algo “melhor”, mas sim uma situação diferente; situação, aliás, deveras disseminada e naturalizada nos regimes sociais híbridos como o que habitamos – algo que pode ajudar a explicar porque muitas pessoas não vêem essas figuras como tiranos “capazes de tudo”, como seus adversários, particularmente na esquerda, muitas vezes os definem.
Como contra-atacar
É evidente que existem muitas frentes de luta importantes hoje habitando esse terreno disforme e fraturado que é o nosso – desde políticas públicas até movimentos autonomistas. Observamos, em consonância com o novo estágio “flexível” do capitalismo, lutas de povos e comunidades tradicionais em defesa dos “comuns” e de seus modos de vida contra a nova rodada de acumulação primitiva em suas diversas formas, ou seja, lutas contra a espoliação; lutas no universo da reprodução ampliada, do trabalho e do bem-estar, a ser, lutas contra a exploração, bem como lutas populistas, dos “99%”, contra a desigualdade crescente relacionada à escalada de financeirização, isto é, lutas contra a especulação – para não falarmos, com Axel Honneth, nas lutas por reconhecimento, dentre tantas outras. É inegável que todas tem feito ampliar consideravelmente o leque de alternativas e possibilidades, expandindo nossa imaginação política.
O que deve nos preocupar, no entanto, é a carência de plataformas de trânsito entre os resultados desses diferentes experimentos políticos. É como se ainda confiássemos que toda resistência, apenas por ser resistência, fosse comensurável com todas as demais lutas sociais – uma coisa irá reverberar na outra porque todas estão submersas em um mesmo substrato homogêneo. Ora, se a hipótese desta “condição periférica” está correta, então o fato é que vamos poder contar cada vez menos com esse pano de fundo comum, essa homogeneidade que garantiria de alguma forma a coexistência e co-implicação entre diferentes fragmentos sociais. Isso nos confronta com a possibilidade paradoxal de vivermos um período de intensa resistência, com uma multiplicação das frentes de luta, sem que isso acarrete em um efetivo acúmulo de força social.
Uma das maneiras de responder a esse predicamento seria assumir a tarefa de dar à democracia um novo sentido – político, mas também estético e epistemológico. Ao invés de tomar a democracia como um emblema que garante a articulação global entre lutas locais, seria o caso, talvez, de conceber a democracia como um trabalho concreto de articulação entre essas instâncias localizadas, mas imediatamente incongruentes entre si. Ou seja, não é mais suficiente apenas se engajar em uma dada frente de luta, é preciso ainda se preocupar em conformar as vitórias e derrotas de cada experimento político a um espaço “artificial”, que precisamos construir, em que essas experiências possam se inscrever, se acumular e nos poupar de repetir os mesmos erros novamente.
Em suma, não podemos mais nos preocupar exclusivamente em “vencer” no jogo democrático, é preciso também aprender a fracassar melhor, isto é, a democratizar as lições dos fracassos. Se tais hipóteses de fundo sobre a crise do modelo político da democracia representativa têm sentido, então talvez hoje seja menos o caso de insistir na democracia como emblema e mais de investir na construção de ferramentas que nos permitam avaliar o terreno acidentado das fraturas do capitalismo periférico e descobrir o que significa construir algo sob essas novas condições.