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PETER FOLEY/BLOOMBERG VIA GETTY IMAGES

Bots de IA só existem a partir da exploração de trabalhadores

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Horas antes de Bard ser lançado no Brasil, a imprensa revelou que funcionários que treinam, dão feedback ao chatbot e moderam os serviços do Google são extremamente explorados. Enquanto as Big Techs lucram, trabalhadores alegam insultos, discriminação racial e transtornos de estresse pós-traumático resultantes de longas jornadas de trabalho.

Nesta semana, o Google, enfim, lançou seu mais recente serviço de Inteligência Artificial (IA), o Bard, disponibilizando-o no Brasil e em outros 27 países, abarcando 40 linguagens distintas. Desde fevereiro, a ferramenta estava disponível nos Estados Unidos e Reino Unido.

Nos últimos seis meses, esses robôs, assim como o ChatGPT, se estabeleceram como assistentes pessoais. Tanto em obras de ficção científica quanto em utopias e distopias, é comum visualizar ferramentas tecnológicas acompanhando as pessoas em seu cotidiano, poupando-as das tarefas consideradas “tediosas”, como pedir seu próprio café ou escolher o que vestir.

Apesar das discussões morais, éticas e filosóficas que podem ser suscitadas acerca do papel da IA na vida humana a partir de 2023, existem questões sérias e práticas a serem abordadas.

“A vida desses trabalhadores, que nunca são lembrados pelas empresas ao comemorem o sucesso de suas tecnologias, estava longe de ser ideal.”

Os serviços de IA estão sendo desenvolvidos de forma semelhante às redes sociais, explorando mão de obra humana em seu processo de construção e ignorando riscos sistêmicos ao futuro da humanidade tendo em vista o máximo de lucro.

Bard

Um dia antes do segundo lançamento do Bard, a agência Bloomberg veiculou uma reportagem impactante que destacava as condições de trabalho extremamente precárias enfrentadas pelos funcionários terceirizados encarregados de moderar e treinar as respostas geradas pelo chatbot.

A vida desses trabalhadores, que nunca são lembrados pelas empresas ao comemorem o sucesso de suas tecnologias, estava longe de ser ideal. A reportagem descreveu as dificuldades enfrentadas por esses profissionais, muitas vezes submetidos a longas jornadas de trabalho exaustivas, sob uma pressão constante e com salários inadequados.

Os relatos apontam para um ambiente de trabalho marcado por prazos curtos e frenéticos, uma carga de trabalho excessiva, instruções complexas, altos níveis de estresse coletivo e remuneração inadequada. Além disso, a incerteza paira sobre esses trabalhadores devido às demissões em massa e aos contratos de curto prazo, que geram uma profunda insegurança.

A falta de clareza e contexto dos relatos acerca das condições de trabalho pode levar os leitores brasileiros a não perceberem imediatamente os problemas subjacentes. Por exemplo, documentos analisados pela Bloomberg revelam que os funcionários recebem uma remuneração de US$ 7,45 por hora de trabalho.

“Esses casos são extremamente relevantes, ao revelarem um padrão preocupante de negligência em relação à responsabilidade social e cívica em nome da busca pela dominância do mercado.”

Para alguém não familiarizado com o cenário trabalhista atual nos Estados Unidos, seria fácil argumentar em defesa das gigantes da tecnologia, alegando que esse valor está conforme o salário mínimo mundial. Mas esse salário mínimo está defasado em dezenas de Estados, sobretudo em regiões republicanas, onde é considerado insignificante em relação ao custo de vida da classe trabalhadora americana. Existe um processo histórico no Senado americano para aumentar federalmente o valor para US$ 15.

O padrão se repete: (não) olhe para o Facebook

A situação descrita pelos funcionários não identificados na reportagem se assemelha alarmantemente ao que moderadores de conteúdo para a Meta (anteriormente conhecida como Facebook) na África relataram em ações coletivas.

Desde o início da pandemia, tem havido um aumento significativo nos processos movidos por moderadores de empresas terceirizadas, como a Sama, que trabalham para gigantes da tecnologia, incluindo a Meta (anteriormente conhecida como Facebook). Nas ações, esses funcionários alegam uma série de questões problemáticas, como insultos verbais, discriminação racial e transtornos de estresse pós-traumático resultantes de longas jornadas de trabalho em conteúdos que precisam revisar.

Esses casos são extremamente relevantes, ao revelarem um padrão preocupante de negligência em relação à responsabilidade social e cívica em nome da busca pela dominância do mercado. A Meta estabeleceu uma posição de destaque no mercado global de redes sociais, com aplicativos que abrangem diversas áreas, desde mensagens e compartilhamento de fotos até comunidades e textos.

Essa dominação foi alcançada em grande parte por meio do poderoso algoritmo da empresa. Como escreveu o jornalista Sérgio Spagnuolo, embora o TikTok represente uma ameaça à supremacia absoluta da Meta no campo das redes sociais, o Facebook ainda conta com 3 bilhões de usuários ativos em suas plataformas, consolidando uma posição dominante.

“Eles enfrentam o desafiador trabalho de lidar com questões sensíveis, como terrorismo, pornografia infantil e outros tipos de crimes graves.”

Embora a Meta ainda não tenha seu próprio chatbot de inteligência artificial, ela serve como um exemplo relevante para ilustrar a necessidade de evitar práticas voltadas apenas para o lucro. Se o objetivo final de uma empresa não fosse simplesmente reter usuários pelo maior tempo possível, talvez houvesse menos casos de distúrbios alimentares entre adolescentes que utilizam o Instagram, um transtorno que é responsável por um grande número de mortes entre os jovens nos Estados Unidos.

A reportagem da Bloomberg destaca que os funcionários terceirizados notaram um aumento no ritmo de trabalho após o lançamento do ChatGPT. O Google priorizou amplamente a inteligência artificial em todos os setores, como afirma a matéria, e se apresenta como superior à concorrência devido ao seu acesso à “amplitude do conhecimento do mundo”.

Responsabilidade social e cívica

O ChatGPT tem diariamente cerca de 100 milhões de usuários. Para efeito de comparação, existem 100 países com menos de 100 milhões de pessoas em todo o mundo.

Embora ainda não tenhamos informações precisas sobre o número de usuários ativos do Bard ou do Bing, ambos desenvolvidos pela Microsoft, é razoável presumir que tenham uma base de usuários na casa dos milhões, dado que estão associados aos mecanismos de busca das empresas.

Além de dar feedback para o desenvolvimento do Bard, os funcionários mencionados na reportagem da Bloomberg desempenham um papel fundamental na segurança dos produtos do Google.

Eles enfrentam o desafiador trabalho de lidar com questões sensíveis, como terrorismo, pornografia infantil e outros tipos de crimes graves. Essas responsabilidades vão além do impacto em sua própria saúde mental, exigindo um nível extremamente elevado de concentração e cuidado.

Esses trabalhadores, muitas vezes, são os “guardiões invisíveis” por trás dos avanços tecnológicos que utilizamos em nosso dia a dia. Eles desempenham um papel crucial na identificação e remoção de conteúdos nocivos, contribuindo para manter uma experiência online mais segura para todos os usuários.

Ou seja, ao não criar as condições de trabalho adequadas para essas pessoas, o Google — que possui 85% do mercado de mecanismos de busca, além de dominância nos serviços de e-mail e outros produtos — de certa maneira está colocando a segurança da sociedade em risco.

“Até o momento, ainda não há precedentes regulatórios ou legislativos globais que estabeleçam a obrigatoriedade de empresas de tecnologia.”

Quando uma empresa detém um monopólio ou uma enorme dominação em determinado mercado, é essencial que ela seja submetida a critérios rigorosos, independentemente de ser estatal ou privada. Um exemplo de região que tem adotado medidas para lidar com essa questão é a União Europeia, que implementou uma classificação para 19 gigantes do setor de tecnologia, redes sociais e comércio online, que possuem mais de 45 milhões de usuários. Essas empresas agora são obrigadas a seguir diretrizes específicas estabelecidas pelo bloco e a fornecer relatórios mensais sobre determinados temas.

No entanto, até o momento, ainda não há precedentes regulatórios ou legislativos globais que estabeleçam a obrigatoriedade de empresas de tecnologia — independentemente do setor — fornecerem condições de trabalho adequadas para seus funcionários.

Embora as leis trabalhistas existam e sejam importantes, independentemente do nível de sindicalismo ou bem-estar social, é urgente a necessidade de processos específicos que exijam o fornecimento de benefícios como terapia, garantia de emprego e estabilidade.

Enfermeiros e médicos usam equipamento especial não apenas para sua própria proteção, mas das pessoas ocupando um hospital. O mesmo vale para trabalhadores em usinas nucleares ou fábricas químicas.

Assim como os trabalhadores em usinas nucleares ou fábricas químicas têm procedimentos rígidos para evitar acidentes e proteger a sociedade, se atualmente milhões de pessoas interagem diariamente com produtos de IA, é preciso crer que seja necessária uma regulação protegendo as pessoas por trás da eficácia — e segurança — dos mesmos.

Sobre os autores

Sofia Schurig

cobre tecnologia, redes sociais e extremismo online. É graduanda em Comunicação Social na Universidade Federal da Bahia (UFBA). Pesquisa semiótica e humanidades digitais. Trabalha na Sabiá e no Núcleo Jornalismo, onde é repórter. Na Jacobin, cuida das seções de Tecnologia e Ciências.

Cierre

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Published in América do Norte, Análise, Capital, Europa, Tecnologia and Trabalho

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