Publicado originalmente na revista New Left Review #116
Introdução
Mais de uma década após os primeiros sinais da crise financeira, os ideólogos capitalistas andam ansiosos por alguma boa publicidade. As promessas outrora atraentes de meritocracia e mobilidade social soam cada vez mais vazias. Eles se angustiam em busca de uma narrativa de legitimação fácil de encaixar em uma apresentação de PowerPoint – algo difícil de se inventar contra um pano de fundo de crescente desigualdade, evasão fiscal generalizada e presságios preocupantes sobre o verdadeiro estado da economia global pós-crise econômica [0] caso os gestores dos bancos centrais decidam retirar seu suporte excessivamente estendido. Quais desenvolvimentos do mundo real poderiam sustentar tal narrativa? Que tema poderia tornar a ideia do capitalismo mais moralmente aceitável para o lote mais recente de graduados da Ivy League [0a], que podem correr o risco de se sentirem atraídos por noções como o ecossocialismo? Apesar da crescente “reação à tecnologia” contra as FAANGs (Facebook, Apple, Amazon, Netflix, Google), os pensadores capitalistas ainda olham para o Vale do Silício e para sua cultura com um cintilar de esperança. Apesar de todos os seus problemas, o Vale do Silício continua sendo um poderoso laboratório para novas – e talvez melhores – soluções de mercado. Nenhum outro setor ocupa um papel tão proeminente no horizonte do imaginário capitalista ocidental nem oferece um campo tão promissor para mitologias de regeneração.
Uma nova linha de pensamento tem começado a abordar como a economia global poderia ser reprojetada em torno das mais recentes inovações digitais para introduzir um mínimo de justiça. O “novo acordo sobre os dados” (“new deal on data”) – o termo que surgiu em um artigo apresentado em Davos em 2009 – é o equivalente neoliberal do mundo tecnológico para o “novo acordo verde” (“green new deal”), mas não exige gastos do governo. [1] A proposta prevê a formalização de direitos de propriedade sobre bens intangíveis, para que os indivíduos possam “possuir” os dados que produzem. Uma vantagem para seus proponentes é que este “novo acordo” simpático ao mercado poderia ajudar a evitar tentativas alternativas de imaginar os usuários como algo diferente de consumidores passivos de tecnologia digital; eles poderiam desfrutar de seu novo status como apressados empreendedores de dados, mas não deveriam aspirar a nada além disso. O novo acordo sobre os dados já acumulou apoio político considerável: da Comissão Europeia às Nações Unidas, muitas instituições mundiais estão convencidas de que alguma iniciativa de “justiça” como essa seria importante para garantir o futuro do capitalismo digitalizado.
O acadêmico jurídico austríaco (e outrora bem sucedido empresário da área de software), Viktor Mayer-Schönberger, carrega alguma responsabilidade por plantar na imaginação capitalista o sonho de “salvação por meio dos dados”. Seu campeão de vendas Big Data (2013), o texto primordial sobre o assunto, escrito em co-autoria com um autor da revista Economist, apresentava uma tese direta: as enormes quantidades de dados que agora estão sendo colhidas e analisadas por uma pequena porção de empresas de visão viriam a produzir novos modelos de negócios e destruir os existentes; a ruptura seria iminente, e os lucros, garantidos. [2] Cinco anos depois, o livro mais recente de Mayer-Schönberger, “Reinventing capitalism in the age of big data” (“Reinventando o capitalismo na era do big data”), compartilha algumas características com aquela obra anterior. Escrito em conjunto com outro autor da Economist, o repórter de negócios alemão Thomas Ramge, faz uso de uma prosa acessível e repleta de anedotas amigáveis para documentar outra grande tendência – “tão importante quanto a Revolução Industrial” – enquanto faz recomendações pragmáticas para empresas e legisladores. Mas Reinventando o capitalismo possui uma ambição muito maior, como sugere o título original do livro em alemão, Das Digital. [2b] O Capital, argumentam eles, estaria desatualizado: uma vez que seja utilizado de forma eficiente por toda a economia, o big data não só iria reinventar o capitalismo – o título do livro em inglês é muito modesto quanto a esse ponto – mas acabar com ele. “Pode estar na hora de fechar a porta na História e eliminar oficialmente o termo ‘capitalismo’”, eles proclamam. [3] No lugar do capital financeiro e de empresas, os mercados ricos em dados iriam empoderar os seres humanos para trabalharem diretamente uns com os outros e, de maneira mais dramática, os dados viriam a suplantar o sistema de preços como o principal princípio organizador da economia.
O sistema de preços é um alvo estranho para um livro que é sem dúvida pró-capitalista. A precificação de mercado há muito vem sendo celebrada por sua capacidade de permitir formas complexas de coordenação social com pouco ou nenhum planejamento central. A partir da década de 1920, naquilo que mais tarde ficaria conhecido como “Debate do Cálculo Socialista”, Mises e Hayek notoriamente argumentaram contra seus adversários de esquerda que seria a ausência do sistema de preços o que condenaria o planejamento central socialista. Na falta de percepções em tempo real sobre as mudanças nos gostos dos consumidores, de usos mais vantajosos de recursos e de estoques flutuantes de mercadorias intermediárias, os planejadores centrais não teriam muitas chances de conseguir ajustar seus modelos rápido o suficiente para acompanhar o mundo em rápida transformação. Muitos socialistas, especialmente na esteira do colapso soviético, acharam esse argumento persuasivo, reconhecendo que haveria uma falha tecnológica inerente ao projeto socialista. Como G. A. Cohen colocou em seu último livro, “o principal problema que o ideal socialista enfrenta é que não sabemos como projetar o maquinário que o faria funcionar”. [4]
Contra-argumentos recentes vindo da esquerda geralmente envolvem apontar como as empresas capitalistas modernas mais bem-sucedidas, da Amazon ao Walmart, são excelentes em planejamento; o advento dos sistemas com base em avaliações e circuitos de retroalimentação digital (ou “feedback digital”) tornará essas técnicas ainda mais difundidas. Se os capitalistas podem planejar, por que os socialistas não poderiam? [5] O argumento oposto também já foi apresentado – de que o big data na verdade viria a causar embaraços à operação do sistema de preços: alguns observadores chegam a afirmar que os sinais de preços dos mercados saturados de dados de hoje, onde capitalistas de risco, fundos de riqueza soberana e plataformas tecnológicas com os bolsos cheios de dinheiro subsidiam serviços ao ponto de ninguém saber de verdade o quanto estes de fato custam, seriam comparáveis aos preços do sistema soviético nos anos anteriores ao seu colapso final. [6] Daí o apelido de “Gosplan 2.0”. (Em sua estrutura, esse argumento não é diferente das acusações dos economistas da escola austríaca contra os efeitos de distorção que a flexibilização quantitativa faria sobre os preços dos ativos.)
No que segue abaixo, irei revisitar – e, espero, revitalizar – o Debate do Cálculo Socialista, explorando algumas das maneiras com que os participantes concebiam as relações entre conhecimento, preço e coordenação social, e como seus referentes podem ter mudado na era do big data. Prosseguirei sugerindo maneiras pelas quais o desenvolvimento de “infraestruturas de avaliação e retroalimentação” digital (ou feedback digital) oferece oportunidades à esquerda para que proponha melhores processos de descoberta, melhores soluções para a hipercomplexidade da organização social em ambientes em rápida transformação e melhores correspondências entre produção e consumo do que a solução de Hayek (concorrência no mercado e o sistema de preços) poderia fornecer. Mas, primeiramente, vale a pena dissecar em mais detalhes as teses de Reinventando o capitalismo, pois suas próprias inadequações são muitas vezes sintomáticas – e, portanto, instrutivas.
1. Reinventando o capitalismo — mas a sério mesmo?
Embora o mecanismo de preços tenha sido um meio eficaz de coordenação social, argumentam Mayer-Schönberger e Ramge, ele sempre teve suas deficiências. A tecnologia digital não só as teria tornado visíveis, mas também forneceria um método alternativo mais eficiente de coordenação social, pois o sistema de preços é um instrumento cego, afirmam os autores. Ele comprime as preferências complexas e multidimensionais dos participantes do mercado em um único número, geralmente eliminando nuances e detalhes, o que pode resultar em transações abaixo da situação ideal. Os consumidores se tornam presas fáceis para profissionais do marketing ardilosos, que os manipulam para que eles comprem coisas de que não precisam simplesmente porque o preço, terminando em noves, faz parecer que o produto teria recebido algum desconto. Porém, os avanços na tecnologia de dados e informática poderiam eliminar essas ineficiências. Reinventando o capitalismo conclama a “uma reinicialização do mercado”, alimentada por dados. Já não haveria a necessidade de compactar uma miríade de fatos heterogêneos na camisa de força dos preços, quando os chips de computador poderiam comunicar esses fatos diretamente. Os participantes no mercado passariam a confiar cada vez mais nos dados, e não nos preços, para coordenar suas atividades, descobrindo novos nichos antes invisíveis e impulsionando a eficiência geral do mercado.
Os autores esboçam a paisagem de uma utopia de consumismo, rica em dados. A vantagem dos mercados digitais em relação aos mercados analógicos seria a maneira como os primeiros permitiriam que ambos os lados de uma transação especifiquem vários critérios de correspondência que vão muito além do preço. BlaBlaCar, a empresa francesa de compartilhamento de caronas, por exemplo, permite que os passageiros especifiquem o nível de “tagarelice” para sua viagem – é difícil espremer essa informação em um preço. Desenvolvimentos tecnológicos recentes que reduzem o custo de extração e categorização de dados a partir de arquivos complexos, como vídeos, têm permitido que compradores e vendedores se encontrem uns aos outros mais facilmente. Os algoritmos de correspondência agora são capazes de processar grandes quantidades de dados usando critérios finamente detalhados. Sistemas de aprendizado de máquina podem inferir nossas preferências por meio de observação e correlação, sem que tenhamos de listá-las. Reinventando o capitalismo prevê novos aplicativos que irão escanear por completo todos os nossos perfis de dados em tempo real e aplicar inteligência de máquina para recomendar comerciantes, produtos e serviços sob medida:
Suponha, por exemplo, que você esteja procurando uma nova frigideira. Um sistema adaptativo, residindo talvez em seu smartphone, acessa seus dados de compras anteriores para coletar a informação de que você comprou uma panela para cooktops de indução da última vez e também que deixou uma resenha bem mais-ou-menos sobre ela. Fazendo a análise da resenha, o sistema entende que o revestimento da panela realmente importa para você e que você prefere um revestimento de cerâmica […] Equipado com essas preferências, ele analisa os mercados online em busca de correspondências ideais, até mesmo levando em consideração a pegada de carbono da entrega (porque o sistema sabe o quanto você se preocupa com isso). Ele negocia automaticamente com os vendedores e, como você está disposto a pagar via transferência direta, consegue obter um desconto. Com um único toque, sua transação está completa. [7]
Graças aos sistemas de crédito baseados em dados, o problema perene de subconsumo do capitalismo se tornaria uma coisa do passado. Se a economia afundar, um “sistema adaptativo” seria capaz de obter um empréstimo para você e comprar o que você quisesse, garantindo aos investidores que os consumidores não teriam perdido a confiança. Além disso, mercados ricos em dados beneficiariam os consumidores por meio da eliminação de ineficiências, por exemplo, nos mercados energéticos, onde as concessionárias atualmente embolsam tarifas pesadas ao explorar as assimetrias de informação entre elas e seus clientes.
1.1. Do sistema financeiro para o capitalismo de dados?
Reinventando o capitalismo admite que o atual monopólio de propriedade dos “dados de retorno para retroalimentação” (“dados de feedback”) gerados em transações entre plataformas de correspondência e seus clientes é um obstáculo para a “transformação significativa” no consumismo democrático que o big data deveria trazer. A informação permanece nas mãos de apenas algumas grandes empresas, mesmo que ela tenha um valor imenso para outros atores econômicos. Os autores propõem resolver o problema por meio de outra variação do “novo acordo sobre os dados”: as empresas de tecnologia deveriam ser forçadas por lei a compartilhar (alguns) dados de retorno com outras startups e atores públicos. “Um mandato progressivo de compartilhamento de dados”, escrevem eles, “garantiria um acesso abrangente, mas diferenciado aos dados de feedback e manteria a escolha e a diversidade na assistência à decisão.” [8] Essa ideia foi bem recebida na Áustria de Mayer-Schönberger, onde o governo de extrema-direita dos partidos ÖVP–FPÖ fez dela uma de suas propostas chave durante a presidência do Conselho Europeu pela Áustria em 2018. [9]
Quanto à eliminação do “capitalismo”, no fim eles estão se referindo principalmente às atividades de instituições financeiras voltadas ao consumidor, que, segundo os autores, serão desestruturadas por startups ricas em dados. Wall Street não precisa tremer. Na verdade, é notável como Reinventando o capitalismo tem tão pouco a dizer sobre a dinâmica do capitalismo realmente existente, preferindo retratá-lo como um mero aglomerado de atividades realizadas por “capitalistas financeiros” – ou seja, instituições como os bancos no estilo antigo, que prosperam à base de dinheiro, e não de dados. Presume-se que essas instituições mais novas e mais ágeis operariam de maneira diferente; suas atividades são incluídas sob a classificação “capitalismo de dados”. Os autores afirmam que “à medida que os mercados se tornam ricos em dados, há menos necessidade de sinalizar com dinheiro” – e, quando o dinheiro já não “tocar o primeiro violino”, os bancos e outros intermediários financeiros precisariam reorientar seus modelos de negócios, trazendo uma mudança “do sistema financeiro para o capitalismo de dados”. De fato:
Com a economia de mercado avançando com a ajuda de dados, não podemos mais rotular o futuro como sendo “capitalista” no sentido do poder ser concentrado pelos detentores de dinheiro. De maneira talvez irônica, à medida que os mercados orientados por dados desvalorizam o papel do dinheiro, eles provam que Karl Marx estava errado, e não Adam Smith. [10]
O capitalismo, nesta leitura, seria apenas uma lista do que os capitalistas fazem. Nessa análise do capitalismo há bem pouco no sentido dele como um sistema, com uma história, um presente e uma lógica perceptível – de concorrência – que impõe restrições significativas em seus caminhos futuros.
Reinventando o capitalismo é um dos vários livros recentes que pretendem apresentar uma leitura das massivas transformações desencadeadas pelo surgimento de novos modelos de negócios com uso intensivo de dados no contexto analítico mais amplo do capitalismo contemporâneo. A Era do capitalismo de vigilância, de Shoshana Zuboff, talvez seja o exemplo mais proeminente; outro é World after capital (“O mundo após o capital”), auto-publicado online pelo capitalista de risco germano-estadunidense Albert Wenger (citado de maneira bem favorável por Mayer-Schönberger e Ramge). [11] Como lhes falta um conceito de capitalismo com fundamentação teórica e histórica robusta, esses textos seguem a mesma trajetória narrativa: os autores começam escolhendo algum estágio anterior – “capitalismo financeiro” para Mayer-Schönberger e Ramge; “capitalismo atento a causas” (“advocacy capitalism”) para Zuboff; capitalismo da “era industrial” para Wenger – e então prosseguem desenrolando o deus ex machina da tecnologia da informação, big data, aprendizado de máquina ou mesmo (no caso de Wenger) “a universalidade da computação a custo marginal zero”. Todos os três concluem que o estágio atual do capitalismo – “capitalismo de dados” (Mayer-Schönberger e Ramge), “capitalismo de vigilância” (Zuboff), pós-capitalismo da “Era do Conhecimento” (Wenger) – representaria um afastamento radical em relação ao estágio anterior, e que mudanças drásticas na tecnologia da informação explicariam a transição. Eles se voltam para a História recente apenas de maneira muito seletiva, principalmente para reforçar seu esquema presentista de dois estágios. As consequências analíticas e políticas variam. Zuboff não tem muito a dizer de positivo sobre a era do “capitalismo de vigilância”, enquanto Reinventando o capitalismo conclui com uma leitura quase religiosa do poder terapêutico dos dados e da informação, que virão a curar os males do capitalismo contemporâneo e restaurar a eficiência do mercado.
1.2 As FinTech e a concorrência capitalista
Resta ver se essa fábula de consumismo rico em dados se provará eficaz como uma ideologia legitimadora. Analiticamente, no entanto, ela é extremamente fraca, o que obriga os autores a deturpar as posições de seus adversários que trazem à discussão. Assim, Reinventando o capitalismo alega que Marx teria sustentado que o dinheiro governa o mundo; agora que são os dados que governam o mundo, prosseguem em seu raciocínio, as análises marxistas não já se aplicariam. Marx, evidentemente, não argumentou nada desse tipo. Muito pelo contrário, ele acreditava que o imperativo da acumulação de capital em face da constante concorrência era a chave, e não o dinheiro como tal. O dinheiro seria uma etapa inevitável no processo de acumulação: nunca “toca como primeiro violino”, quem faz isso é o capital. Para Marx, a acumulação de capital seria impensável sem a produção de mercadorias. Mesmo levando em consideração as novidades do capitalismo global de hoje, onde produtos financeiros complexos parecem ter perdido seu referente na economia real, seria difícil concluir que a proliferação de mercadorias e serviços digitais intensivos em dados alteraria fundamentalmente os termos e a dinâmica de acumulação de capital.
Para provar que Marx estava errado, Reinventando o capitalismo precisaria demonstrar que o mundo do capitalismo de dados e de startups de “FinTech” – serviços financeiros baseados em tecnologia; por exemplo, originadores de empréstimos apenas digitais que usam dados pessoais para determinar o quanto alguém pode acessar em crédito – não estaria sujeito às mesmas pressões que o setor financeiro tradicional que ele supostamente substitui. Os autores não tentam fazer isso, e não é difícil enxergar o porquê: há poucos desenvolvimentos no mundo das FinTech que não possam ser explicados pelos imperativos da concorrência capitalista, como até mesmo um exame superficial da relação entre os dois setores é capaz de confirmar. Os grandes bancos – embaixadores peso-pesado do capitalismo financeiro supostamente desatualizado – estão gastando grandes somas em tecnologia: o orçamento tecnológico do Citigroup foi de US $ 8 bilhões em 2019; o do Wells Fargo, de US $ 9 bilhões; do Bank of America, de US $ 10 bilhões; o do JP Morgan superou US $ 11 bilhões. São números impressionantes, em pé de igualdade com os dos próprios gigantes da tecnologia. De fato, as dez empresas que mais investiram em tecnologia em 2018 foram bancos e empresas de tecnologia, com a adição do Walmart. [12] O JP Morgan lançou um time de IA muito bem equipado em Nova York e um campus de FinTech de 1.000 pessoas na Califórnia, sugerindo que o banco está na vanguarda da inovação. Palo Alto hoje também abriga o laboratório de Inteligência Artificial da BlackRock [o maior fundo de ativos financeiros do mundo].
Uma análise mais de perto, porém, revela que a maior parte das despesas dos bancos relacionadas à tecnologia vai para a manutenção de sistemas legados, ao invés de pesquisa e desenvolvimento genuínos. Após várias fusões e migrações de sistema, seus pacotes de hardware e software existentes tornaram-se proibitivamente caros, o que os leva a novas fusões a fim de reduzir os custos dos gastos em tecnologia. Esse foi um fator importante no enlace entre a SunTrust e a BB & T, avaliado em US $ 66 bilhões e que, de acordo com o CEO do Citigroup, foi “predominantemente impulsionado pela necessidade de ajuste de escala em torno da capacidade de investimento e implementação tecnológica”. O Citigroup, por outro lado, já estava nessa escala. [13] Previsivelmente, um estudo recente sobre gastos com tecnologia demonstrou que os maiores bancos não apenas investem mais do que seus rivais menores, mas também tendem a gastar mais com tecnologia avançada, em oposição à manutenção – e sua escala e suas maiores reservas de dinheiro livre certamente não são fatores menores para que isso ocorra. [14] Nada nesta paisagem, exceto pelas próprias tecnologias, pareceria estranho ou alienígena para Marx.
Considere, também, a dinâmica de negócios do mundo FinTech. De acordo com uma estimativa, o investimento das FinTech em 2018 atingiu um recorde de US $ 112 bilhões. [15] Não é difícil adivinhar o porquê: o setor promete lucros que podem um dia ser tão astronômicos quanto os dos bancos tradicionais – o JP Morgan registrou lucro líquido de US $ 32,5 bilhões em 2018, ainda um pouco acima dos US $ 31 bilhões da Alphabet [Google] – mas a custos consideravelmente mais baixos, já que não haverá necessidade de pagar pela integração e manutenção de sistemas tecnológicos desatualizados. As taxas gerais de lucratividade devem, portanto, disparar. Embora Reinventando o capitalismo reconheça a importância para o setor FinTech de não precisar dar conta de altos custos legados, os autores erroneamente atribuem esse fato ao estágio único do “capitalismo de dados”. Todavia, invasões de setores por recém-chegados armados com tecnologias mais rápidas e mais baratas têm sido uma característica regular da concorrência capitalista, com a computação em nuvem e a infraestrutura de dados representando aquilo que uma vertente da economia marxista reconheceria como o “capital regulador” desta indústria em particular.
Não surpreende, portanto – e está totalmente alinhado com a própria teoria de Marx da concorrência no mercado – que as empresas estabelecidas façam o seu melhor para se defender contra tais ataques, muitas vezes comprando as empresas mais jovens que as desafiam. A aquisição pelo JP Morgan em 2017 da WePay, uma das líderes em pagamentos digitais, foi exatamente o que se esperaria que uma empresa de seu porte deveria fazer nessas circunstâncias. Os “disruptores” das FinTech de hoje serão eles mesmos desafiados em um futuro não tão distante pela chegada de técnicas de produção ainda mais eficientes e seu uso como armas nas mãos da próxima geração de startups. Nesse ponto, Mayer-Schönberger e Ramge provavelmente terão de inventar um terceiro estágio – algum tipo de “capitalismo pós-dados”.
Para quê tudo isso, quando o conceito existente de capitalismo, em toda sua riqueza analítica, já permite tais transições? Talvez porque operar com esse conceito significaria conceber o capital como um sistema e como uma relação social – e não apenas um estoque de bens físicos e imateriais disponíveis para a produção, como tendem a imaginá-lo os economistas neoclássicos. Dada a relutância de Mayer-Schönberger e sua turma em fazê-lo, mesmo em um contexto de crescentes ansiedades sobre a direção do sistema capitalista, é bem provável que veremos outras torrentes de livros que são nominalmente sobre o futuro do capitalismo, mas que oferecem, na melhor das hipóteses, descrições de regularidades observadas sobre como as empresas capitalistas expandem seus estoques de capital para incluir dados. O comportamento futuro dessas empresas, somos convidados a acreditar, equivaleria a nada menos do que o futuro do próprio capitalismo. Se isso é um pouco melhor do que os contos de fadas de concorrência perfeita e equilíbrio de mercado elaborados por economistas neoclássicos, o uso prático e político de tais percepções é mínimo, já que elas ignoram os fundamentos que impulsionam e dão forma ao comportamento até mesmo daquelas empresas capitalistas individuais que suas teorias se propõem a explicar.
A primeira grande dicotomia de Reinventando o capitalismo – “dados versus dinheiro” – parece insustentável. Mas e quanto à sua segunda dicotomia, entre preços e informação? Aqui, a avaliação é um pouco mais complicada e exigirá uma excursão pela economia clássica e neoclássica, com suas ideias contrastantes sobre informação, preços e concorrência – e, em particular, uma leitura atenta de Hayek. Reinventando o capitalismo é muito leve em teoria econômica, e nunca fica muito nítido qual arcabouço – clássico, neoclássico, austríaco? – informa a insistência dos autores na obsolescência do preço e na supremacia dos dados. Não obstante, é possível tentar deduzí-lo.
2. Informação e sistema de preços
O arcabouço neoclássico apresenta algumas premissas um tanto duvidosas sobre preços e informações – uma consequência de sua visão surreal sobre a concorrência. Assume-se um mercado perfeitamente competitivo, livre de quaisquer barreiras à entrada [de novos concorrentes], e que estaria dividido entre compradores e vendedores que apenas “tomam” os preços, todos os quais possuiriam conhecimento perfeito. “Competição” ou “concorrência”, nessa leitura, não seria um processo se desdobrando ao longo do tempo, mas apenas um rótulo descritivo ou um retrato instantâneo, usado para designar um equilíbrio existente. Sob concorrência perfeita, informações adicionais não poderiam desempenhar nenhum papel nas trocas de mercado porque tudo que pudesse ser conhecido já seria conhecido – já que os participantes do mercado possuiriam um conhecimento perfeito. Os preços, neste enquadramento, seriam suficientes, embora permaneçam um tanto envoltos em mistério – o produto do exótico processo de tâtonnement, ou tentativa-e-erro, que estabeleceria uma correspondência entre oferta e demanda (originalmente introduzido na teoria econômica por Léon Walras na década de 1870).
Os neoclássicos há muito admitem que a concorrência pode ser imperfeita: barreiras à entrada no mercado, por exemplo, ou o surgimento de empresas monopolistas, poderiam tornar “imperfeita” a competição, embora essas complicações não dêem mais dinamismo à noção neoclássica de “concorrência”. Também pode haver deficiências relacionadas aos fluxos de informações. Nos últimos cinquenta anos, essa percepção gerou todo um campo de conhecimento, conhecido como “economia da informação”, que estuda como várias assimetrias de informação – sendo aquela entre vendedores e compradores de carros usados o exemplo mais famoso – minam a eficiência do mercado. Uma vez que essas assimetrias fossem resolvidas, por meio de políticas públicas ou contratações privadas, as ineficiências existentes deveriam desaparecer, trazendo a concorrência para mais perto de sua condição de equilíbrio “perfeito”.
Como as informações e os preços estão relacionados na “concorrência imperfeita”? Os vendedores podem saber mais do que revelam sobre as condições de um carro usado (um “limão”, no jargão dos revendedores de automóveis); é por eles reterem essas informações que o preço [do carro usado] no mercado consegue ser tão alto quanto estiver. Para a maioria dos economistas, o problema são os mercados pobres em dados, e não mercados ricos em dados. Os autores de Reinventando o capitalismo, por outro lado, consideram a novidade da dimensão de riqueza em dados das transações de mercado como uma característica permanente de todas as trocas econômicas; essa abundância de dados não surgiria apenas em condições imperfeitas. Em vez disso, ela estaria presente no curso das transações cotidianas, onde não se diz que esteja presente nenhuma assimetria de informações. Mas se, na ausência de quaisquer imperfeições, o preço de uma mercadoria não refletir por completo sua utilidade para um grupo de consumidores excêntricos, a atração das forças de mercado deveria, em tese, trazê-lo para o nível certo.
Argumentar em favor da existência de uma dimensão inteiramente nova nas trocas de mercado, anteriormente não reconhecida pela teoria econômica neoclássica, exige um afastamento radical em relação a alguns de seus limitantes pressupostos fundamentais. Parece que isso deixaria os autores com apenas um lugar para onde ir – uma teoria da concorrência que não assuma conhecimento perfeito nem seja obcecada por equilíbrios. Esta, evidentemente, é a teoria clássica da concorrência familiar a Smith, Ricardo e Marx, e que foi recentemente revisada e atualizada por Anwar Shaikh em Capitalism: competition, conflict, crises (“Capitalismo: concorrência, conflito e crises”). [16] Hayek, por acaso, subscrevia a muitos dos postulados dessa teoria. Em suas últimas décadas, ele os utilizou para elevar a competição a um dispositivo de regência universal por meio do qual novos conhecimentos – como os mais recentes gostos dos consumidores ou técnicas de produção – seriam “descobertos”. Antes dessa virada política, porém, Hayek escreveu muitas páginas, a maioria delas durante o Debate do Cálculo Socialista, explorando a exata natureza da relação entre preços e informação. A maioria de seus oponentes socialistas em Viena se encontrava firmemente no campo neoclássico. Se, como eles acreditavam, o marxismo fornecia aos capitalistas o aparato teórico para compreender a dinâmica existente do capitalismo, então a economia neoclássica, com sua inclinação para a análise matemática racional, providenciaria aos social-democratas os recursos intelectuais para projetar a dinâmica futura do socialismo. [17] A discordância de Hayek com suas contrapartes socialistas era, portanto, não apenas ideológica, mas também metodológica; em matéria de concorrência, suas opiniões, moldadas pela tradição clássica, estavam mais próximas das de Marx do que, digamos, das ideias de Oskar Lange.
Em Reinventando o capitalismo, Hayek aparece como o garoto-propaganda da obsessão dos economistas com o sistema de preços como um eficiente meio de transporte de informações. Uma leitura superficial do famoso ensaio de Hayek publicado em 1945, “O uso do conhecimento na sociedade“, pode sugerir isso. Ao argumentar que o sistema de preços permitiria que atores econômicos díspares coordenem suas atividades, ele não estava cantando um hino à superioridade do sistema de preços sobre o planejamento central? “A profunda apreciação de Hayek pelo preço repousa no fato de que, à medida em que os parceiros em uma transação negociam, eles precisam levar em consideração todas as informações que têm em mãos, incluindo suas prioridades e preferências, e condensá-las em um único número”, afirmam Mayer- Schönberger e Ramge. É contra essa visão que se assume ser a de Hayek que eles montam sua própria argumentação de que a tecnologia agora poderia fornecer mais informações do que os preços, porque já não seria mais necessário condensar as informações – pode-se simplesmente utilizá-las.
2.1. Conhecimento fora dos preços (não-preço)
Quão precisa é a descrição que eles fazem das opiniões de Hayek? Em primeiro lugar, a ideia de que os preços seriam definidos em um diálogo ordenado entre os dois parceiros de transação – e não como resultado de uma miríade de forças e considerações no mercado – é a heresia walrasiana que Hayek nunca teria endossado. Em segundo lugar, Reinventando o capitalismo repete o erro de muitos economistas neoclássicos em resposta ao ensaio de Hayek de 1945, ao não conseguir enxergar que a visão dinâmica da concorrência para Hayek não é a mesma que a versão estática deles. A concepção de Hayek admite as práticas e instituições que moldam a batalha da competição antes que uma venda seja feita e o preço associado seja registrado. Os neoclássicos costumam assumir que, para Hayek, o sistema de preços é o único lugar onde a informação pode residir: ela está lá – ou não está em lugar nenhum. Nisso eles falham em compreender Hayek duas vezes: primeiro, ao tratar o sistema de preços como sendo meramente o “transportador” de informações e, em segundo lugar, ao assumir que ele seria o único transportador desse tipo no sistema capitalista. Ambas são interpretações errôneas comuns que surgem de uma leitura altamente seletiva da obra de Hayek, na maioria dos casos limitada a “O uso do conhecimento”, e que ignora tudo o mais que ele escreveu sobre a concorrência.
Mas o sistema de preços de fato “transmite” conhecimento? Na verdade, não. Um título mais apropriado para o famoso ensaio de Hayek seria “O não-uso do conhecimento na sociedade”, pois ele insiste que o sistema de preços funciona tão bem justamente porque os atores econômicos não precisam saber muita coisa sobre o mundo para agir nele de maneira eficaz. [18] Os preços não transmitem conhecimento, pelo menos não de uma ponta a outra do mercado. Nem precisam: assim que um ator econômico descobrir um conjunto de fatos que mudem sua avaliação de uma mercadoria, os efeitos dessa reavaliação se propagam por todo o sistema – elevando ou diminuindo o preço da mercadoria – sem que ninguém mais precise saber quais foram esses novos fatos. Se o sistema de preços de fato transmite alguma coisa, são as posições atuais – muitas delas baseadas em percepções errôneas sobre o presente e o futuro – de todos os atores econômicos em relação uns aos outros: é como um retrato aéreo instantâneo de uma batalha militar em andamento. É uma verdade trivial a afirmação de que esse instantâneo contém e comunica “conhecimento”, mas esse “conhecimento” certamente não é uma soma total, que possa ser desagregada e reorganizada à vontade, dos “conhecimentos” individuais daqueles que participam da batalha.
Um arranjo tão elegante e tão leve em informações como o mecanismo de preços [18b] só pode funcionar porque grande parte da complexidade real da concorrência é tratada e reduzida em outras partes do sistema econômico. Primeiramente, ele se baseia nas normas, costumes e regras mais amplas do capitalismo, há muito internalizadas pelos participantes do mercado – por exemplo, o entendimento de que o corte de custos é uma tática importante para sobreviver em um mercado competitivo. Isso restringe o escopo de respostas em potencial e suaviza a coordenação social: enquanto a busca pela lucratividade permanecer o objetivo mais geral de todo o sistema, todos sabem [mais ou menos] o que esperar. É evidente que, se essa condição não se aplicar, o sistema de preços perde imediatamente sua magia de coordenação, pois as mudanças nos preços se tornariam ilegíveis – da mesma forma que o instantâneo aéreo do campo de batalha se tornaria ininteligível se um lado de repente passasse a professar o pacifismo. O sistema de preços é capaz de realizar tanto com tão pouco [18c] justamente porque os atores econômicos não precisam abrir um manual ou consultar seu terapeuta para saber o que fazer quando os preços mudam. Quando os economistas austríacos respondem aos defensores atuais do planejamento central observando que qualquer sistema não-capitalista – mesmo um sistema com suas raízes no poder do big data – só poderia vencer a eficiência do sistema de preços se também criasse novos modos comportamentais e estruturas de significado, eles têm um ponto.
Em segundo lugar, além do sistema de preços, a sociedade capitalista também possui sistemas para comunicar conhecimentos mais amplos não relacionados aos preços, que moldam a dinâmica da competição antes das trocas no mercado ocorrerem. Hayek destacou o papel da publicidade e da imprensa, bem como mecanismos mais informais. “A concorrência”, escreveu ele, “é em grande medida a competição por reputação ou pela boa vontade” – é “essencialmente um processo de formação de opinião: ao espalhar informações, cria aquela unidade e coerência do sistema econômico que pressupomos quando pensamos nele como um mercado”. [19] O sistema de conhecimento – este canal secundário de comunicação – é o que garante a coordenação social, mesmo quando nossa familiaridade com as mercadorias reais é escassa ou inexistente. Se isso soa como se fosse a dimensão “rica em dados” dos mercados “descoberta” pelos autores de Reinventando o capitalismo, é porque é ela mesmo: a existência do sistema de conhecimento só poderia ser uma surpresa para os economistas neoclássicos que constroem seus modelos ignorando o estágio crucial da atividade econômica em que tal “riqueza de dados” é de suma importância. Lida a partir de uma perspectiva Hayekiana, a economia digital simplesmente formaliza e melhora os processos anteriores de formação de opinião, tornando a reputação dos participantes do mercado mais fácil de atualizar em tempo real, ou simplesmente alertando os clientes, por meio de uma notificação em seus telefones, sobre o lançamento de um novo serviço de táxi onde o motorista fica feliz em assobiar a música preferida do cliente.
Argumentar que haveria uma escolha a ser feita entre o sistema de preços e o sistema de conhecimento – ou que este último, na forma do big data, estaria agora suplantando o primeiro – é fundamentalmente não entender a visão de Hayek de como o sistema capitalista funciona. O fato dos preços terem significado informativo para os participantes do mercado – um significado que por si mesmo depende de que eles tenham internalizado as leis básicas do capitalismo – não os impede de adquirir outras formas de informação, antes do momento da troca, durante a fase crucial da “concorrência real”. Como os economistas neoclássicos, os autores de Reinventando o capitalismo eliminam esse estágio anterior de sua concepção de troca. Eles, portanto, afirmam que os preços devem condensar todas as informações disponíveis – o que, obviamente, eles não são capazes de fazer. Toda a premissa do livro é a consequência lógica de tentar encaixar a visão dinâmica de concorrência de Hayek no interior de uma estrutura neoclássica estática – e, ao descobrir que ela não se encaixa, postular que precisamos de outro termo para “capitalismo” que favoreça mais a informação.
O ensaio de Hayek de 1945 teve um efeito profundo no desenvolvimento da Economia moderna. [20] Até seu aparecimento, o Debate do Cálculo Socialista era amplamente considerado como tendo sido vencido pelos oponentes socialistas de Mises e Hayek – Oskar Lange como o principal entre eles – que defendiam uma abordagem mista, na qual os gerentes de fábricas individuais teriam permissão para encontrar o preço “certo” para cobrar por seus produtos por meio do aprendizado na base de tentativa e erro através do mercado, enquanto o Conselho de Planejamento Central definiria os preços dos insumos. Na verdade, Mises e Hayek não alteraram seus argumentos ao longo do debate, mas seus oponentes social-democratas, casados como estavam com a Economia Neoclássica, inicialmente consideraram que sua argumentação seria sobre a dificuldade de calcular os níveis apropriados para os preços, com base nos dados disponíveis – e não sobre o desafio de coletar e atualizar os dados, que nunca estão automaticamente “disponíveis”. Mises e Hayek, com variados graus de clareza e ênfase, estavam enfatizando isso o tempo todo, mas foi necessário o ensaio de Hayek para deixar isso nítido. [20a]
No entanto, os economistas neoclássicos ainda interpretaram erroneamente o ensaio de Hayek. Suas premissas teóricas de concorrência perfeita os levaram a concluir que Hayek apenas queria dizer que o sistema de preços era capaz de reunir e processar os dados necessários para operar uma economia com muito mais eficácia do que um sistema baseado no planejamento central. [21] Todavia, para Hayek, não era apenas uma questão de quão bem ou quão eficientemente cada sistema poderia coletar os mesmos dados. Não havia equivalência entre os dados processados pelos dois sistemas: o sistema de preços funcionaria tão eficientemente apenas porque o capitalismo fazia o resto. Essas interpretações errôneas de Hayek, frequentes entre os economistas neoclássicos social-democratas no período do pós-guerra, visavam formalizar suas percepções sobre o papel informacional do sistema de preços dentro do quadro teórico neoclássico. Essas formalizações eventualmente permitiram que os sucessores de Oskar Lange e Abba Lerner mostrassem que o sistema de preços só era tão eficiente quanto Hayek havia afirmado em condições muito específicas.
A tarefa desses planejadores progressistas, naquele momento confortavelmente inseridos nas instituições acadêmicas da Guerra Fria, mudara do ousado objetivo anterior de projetar ambientes não-mercantis para a tarefa mais pragmática de redesenhar os ambientes de mercado a fim de torná-los mais eficientes. Os planejadores já não se ocupariam com o estabelecimento de preços de insumos ou cotas de produção, como as gerações anteriores de economistas socialistas poderiam ter defendido; em vez disso, eles se valeriam de técnicas matemáticas avançadas e da teoria dos jogos para agir sobre as dimensões informacionais recém-descobertas da atividade econômica de modo a produzir as condições ideais. Se, por exemplo, alguns participantes do mercado tivessem bons motivos para ocultar suas verdadeiras preferências, evitando que uma possível transação de mercado acontecesse, que tipo de instituição avançada – um leilão, talvez – poderia ser projetada para revelá-las?
Tais percepções sobre a maleabilidade informacional dos mercados deram origem a agendas de pesquisa completamente novas com nomes como “design de mecanismo” e “design de mercado” (ou “projeto de mecanismo” e “projeto de mercado”). O que tudo isso tem a ver com o socialismo? Bem pouco: tudo o que restou do radicalismo anterior foi a figura do planejador, que, sem nenhum planejamento verdadeiro a fazer, foi renascido como o economista tecnocrático que poderia construir mercados sob demanda. Embora Hayek, em suas primeiras contribuições ao Debate do Cálculo Socialista, tivesse traçado uma distinção explícita entre o economista – o protagonista de uma economia de mercado – e o engenheiro – o protagonista de uma economia de planejamento central – o consenso pós-Hayekiano na economia neoclássica produziu uma estranha mistura dos dois. [22] E, conforme o mundo se tornava cada vez mais digitalizado, construir novos mercados, bem como ajustar os existentes, se tornou mais fácil e mais barato: agir sobre as dimensões informacionais das trocas de mercado agora pode ser feito remotamente, por meios de plataformas digitais.
Reinventando o capitalismo pertence diretamente a esta tradição intelectual de “design de mercado” – um fato que os autores reconhecem vagamente ao situar sua argumentação em relação ao trabalho do economista da Universidade de Stanford Alvin Roth, um vencedor do Prêmio Nobel praticante do “projeto de mercado”. Seu livro breve e em linguagem não-acadêmica sobre o assunto, “Who gets what — and why” (“Quem recebe o quê – e por quê”, de 2015), ajudou a aprofundar a popularização desse campo de estudos. Lido com atenção, o livro fornece dicas úteis sobre para onde podem nos levar os designers/projetistas de mercados mediados digitalmente. [23] Comemorando “a capacidade crescente dos economistas de serem engenheiros”, Roth também se apresenta como um discípulo de Hayek, afirmando que o economista austríaco teria “entendido que há um lugar para os economistas ajudarem na compreensão de como projetar mercados”. Mas por que se preocupar em projetá-los? Porque, argumenta Roth, na vida real todo tipo de fator inesperado pode descarrilhar o processo walrasiano de “tâtonnement” [ou “tatear”, a busca de um nível equilibrado na base da tentativa e erro]: alguns participantes do mercado podem chegar muito cedo e sair antes que uma correspondência seja encontrada; muitos podem chegar ao mesmo tempo, causando um “congestionamento” do mercado; alguns podem ter medo de compartilhar suas verdadeiras preferências; alguns podem ser impedidos de usar o sistema de preços para fechar transações – por exemplo, em trocas de órgãos, onde não se permitem vendas.
Mercados eficazes são “densos” (apresentam muitos participantes) e bem estruturados (resolvem potenciais conflitos devido a incompatibilidades de tempo, preocupações sobre segurança ou “incompatibilidade de incentivos” entre diferentes participantes). A tarefa do economista-barra-engenheiro seria observar as regras reais de operação dos mercados e, em seguida, “intervir sobre elas, redesenhá-las, consertá-las quando estiverem quebradas e iniciar novas regras onde forem úteis”. A hipótese anterior – ainda presente nos escritos de Leonid Hurwicz na década de 1970 – de que condições específicas poderiam exigir o design de formas não-mercantis, há muito se foi; sem surpresa, dados os tipos de ambientes comerciais onde a maior parte do design de mercados realmente acontece. Como um membro proeminente do status quo neoliberal colocou em uma resenha do livro de Roth: “Muitos dos futuros designers de mercados do mundo trabalharão em startups do Vale do Silício, e não na academia”. [24]
2.3. Modalidades de mercado: lei e concorrência
Projetar mercados envolve uma escolha de modalidades nas quais subscrever as transações. Um exemplo citado por Roth em Quem recebe o quê articula a frustração do autor com um comerciante desonesto que não lhe entrega uma peça de mobiliário, levando-o a adotar uma ação jurídica. Ele rapidamente descobre que não estava sozinho em sua reclamação contra o comerciante, cuja má reputação de alguma forma não havia se espalhado pelo mercado local. Onde um economista mais tradicional poderia ter sido levado a refletir sobre os caprichos do sistema de contrato, o economista-engenheiro Roth usa o caso para argumentar que as plataformas digitais agora permitem que os clientes classifiquem os comerciantes individuais, formalizando sua reputação e a tornando visível para todos, reduzindo portanto os riscos envolvidos na troca no mercado. Na verdade, embora Roth não explore isso, na era digital agora há uma nítida escolha de modalidades: é possível seguir o caminho legal e fortalecer os direitos dos compradores – buscando proibir comportamentos transgressivos por parte dos vendedores – ou pode-se seguir pelo caminho dos mecanismos de informação, reputação e avaliações, permitindo que os compradores anteriores punam tais transgressões de maneira retroativa.
De fato, a problemática de Reinventando o capitalismo, originalmente construído ao longo do eixo preço-informação, também gira em torno do eixo lei-mercado. Não é que o preço esteja perdendo terreno para a informação; mais que isso, as soluções para os problemas sociais que se baseiam na lógica do Direito – e, portanto, em marcos coletivos, passíveis de revisão democrática – estão perdendo espaço para soluções baseadas na lógica do mercado, sob medida para a figura atomizada do consumidor. A Uber, cuja existência depende da polinização cruzada entre vários mecanismos de avaliação e retroalimentação de dados, é um exemplo disso. Pode-se argumentar que seu modelo – com motoristas e passageiros avaliando uns aos outros, e o preço de uma corrida reagindo em tempo real às mudanças na demanda – seria precisamente um exemplo dos preços dando lugar às informações: a capacidade da Uber de coletar e implantar dados sobre aspectos periféricos das transações, bem como sobre as condições de mercado mais amplas nas quais elas ocorrem, solapam a centralidade do mecanismo de preços. No entanto, isso não leva em conta a razão pela qual o modelo pré-Uber de táxis regulamentados não incorporava nem mesmo as avaliações que poderiam ter sido obtidas dentro das possibilidades tecnológicas anteriores. A rigidez das tarifas de táxi não era consequência de suposições errôneas sobre preços e informações, mas um reflexo das condições legais impostas aos proprietários de táxis: o que eles sabiam sobre os passageiros ou sobre mudanças nas condições do mercado era irrelevante, uma vez que eles eram legalmente obrigados a oferecer o mesmo serviço, com as mesmas taxas, para todos. Solidariedade com os cidadãos, sim – mas, do ponto de vista das startups, aqueles eram tempos de extrema pobreza em informações.
Comparado a um sistema alimentado por avaliações e algoritmos, este sistema aparentemente arcaico e baseado em leis – que pressupõe e garante que os passageiros possuam direitos – nitidamente constitui uma drenagem nos lucros dos prestadores de serviços. A mudança para a “governança pelos números”, como descreve Alain Supiot, reverte esse dreno e pode até aumentar a eficiência do mercado, [25] mas isso é alcançado ao custo da eliminação de certos direitos – e, junto com eles, de todo um modo de pensar sobre a coordenação social em termos de instituições baseadas na solidariedade, como as leis. Embora isso raramente seja mencionado nas discussões convencionais, diferentes modos de coordenação social têm diferentes valências políticas. Um sistema que reduz a complexidade ao tornar a lei explícita, transferindo assim para os fornecedores a carga de adaptação a ela – como acontece com os padrões de segurança para medicamentos, por exemplo – libera os consumidores de ansiedades. Compare isso a um sistema que reduz a complexidade usando as leis implícitas e não declaradas da concorrência capitalista para induzir tanto os produtores quanto os consumidores a ajustar seu comportamento: quaisquer que sejam suas diferenças em eficiência, o primeiro sistema tem a vantagem de não disciplinar os consumidores de maneira oculta.
O que já foi feito com os passageiros (e motoristas) agora está sendo estendido a outros domínios. O campo conhecido como “regulação algorítmica” – ou ”regulação 2.0” – estuda como aplicar mecanismos de avaliação e retroalimentação do tipo Uber a uma ampla gama de atividades sociais. [26] Os laboratórios Sidewalk, um braço da Alphabet [Google] trabalhando para “consertar” as cidades, sugere o uso desses mecanismos para o zoneamento: por que as câmaras municipais deveriam impor restrições sobre o que pode ou não ser construído, em vez de simplesmente deixar que os construtores capitalistas experimentem fazer o que desejarem no mercado imobiliário local e interferir apenas se as avaliações – de vizinhos reclamando do barulho, por exemplo – excederem algum limite negativo?
3. Modos de coordenação social
Uma contribuição indiscutível de Reinventando o capitalismo é a identificação dos “dados de avaliação e retroalimentação” (feedback) como um espaço de futuras batalhas políticas. Entretanto, precisamos ampliar o escopo do conceito e considerar a própria “infraestrutura de avaliação e retroalimentação”: a propriedade e a operação dos meios de produção dos “dados de avaliação” são no mínimo tão importantes quanto a questão de quem possui os dados em si. As batalhas cruciais à frente envolverão o papel desta “infraestrutura de avaliação e retroalimentação” na reinvenção dos projetos políticos tanto da esquerda como da direita.
3.1. Circuitos de avaliação e retroalimentação neoliberais
Para os neoliberais, a nova “infraestrutura de avaliação” atende a dois objetivos amplos. Primeiro, pode ajudar a resolver problemas que obstruem os mercados existentes, os sobrecarregando de ineficiências. Em segundo lugar, pode servir para protelar ou bloquear soluções indesejadas para problemas sociais emergentes, em particular soluções que não estejam, como eles dizem, “em conformidade com o mercado”. Para Cass Sunstein, isso seria alcançado por meio do projeto de “empurrões” (ou “nudges”) digitais e outros sistemas de intervenção comportamental que levem os usuários a se comportar “racionalmente” e a “fazer a coisa certa”. Mas mesmo isso ainda é difícil de se vender para alguns neoliberais, especialmente quando o “empurrão” é conduzido sob os auspícios de departamentos governamentais. [27] Mais aceitavelmente, um programa de retroalimentação por avaliações seria realizado, ao estilo de Alvin Roth, por meio do projeto de mercados onde antes não havia a possibilidade de mercados viáveis. O aspecto político da abordagem de projetos de mercado é ambíguo: por um lado, a celebração do engenheiro por Roth deixa um aroma justamente daquela perspectiva bem construtivista, racionalista e cientificista – l’esprit de géométrie – à qual Hayek se opunha ferozmente. Por outro lado, uma leitura cuidadosa de Hayek no contexto das batalhas ideológicas da Guerra Fria também revela muitos casos em que ele justifica intervenções construtivistas, especialmente em nome do “planejamento para a concorrência”. [28] Na verdade, pode não haver outra opção. As crises que assolam o neoliberalismo em seu momento de triunfo global revelaram que, sem o auxílio de seus adversários neoclássicos mais inspirados na engenharia, os hayekianos simplesmente não sabem como governar o mundo que conquistaram.
Uma coisa é pregar as virtudes da “ordem espontânea” para aqueles a favor do planejamento central; mas o desmantelamento ativo das formas existentes de coordenação social planejada ou baseada na lei exige a capacidade de fornecer formas alternativas que no mínimo evitem a anarquia e o caos completos (o sistema ferroviário privatizado no Reino Unido chega perto disso). Pode-se esperar o tempo que quiser para que surja a “ordem espontânea”, mas a tolerância do público ao neoliberalismo pode simplesmente se esgotar nesse meio tempo. Politicamente, é uma estratégia arriscada demais: o programa neoliberal, implementado ao pé da letra, perderia rapidamente sua durabilidade e, com ela, qualquer legitimidade baseada na eficiência que pudesse ter. Um pouco de construtivismo, ao que parece, pode ajudar muito.
3.2. Infraestruturas de avaliação e a esquerda
Quais programas a esquerda pode propor para uma “infraestrutura de avaliação e retroalimentação”? A tentação inicial pode ser descartá-la como uma versão digitalizada da ordem espontânea hayekiana – a mecânica oculta do neoliberalismo, inútil para um projeto alternativo progressista. Na visão de Governança pelos números de Supiot, com sua distinção quase ontológica entre leis e numerais, e sua condenação do comunismo e do capitalismo por seu impulso inerente para a quantificação, a tarefa urgente para a esquerda seria defender o Direito – e o espírito de solidariedade que o informa – contra o ataque da governança orientada por avaliações. O problema com essa posição é que, mesmo que a sua suspeita sobre a quantificação seja justificada, ela não apresenta uma maneira óbvia de evitar a invasão de soluções neoliberais nas áreas onde as leis possuem apenas uma presença menor. Que as leis compõem uma forma de coordenação social parece algo incontestável, mas será que elas deveriam constituir a única forma no arsenal da esquerda? À medida que as tecnologias digitais – as disseminadoras inconscientes da neoliberalização – envolvem nossa vida cotidiana, quão resiliente será a legislação contra seus efeitos políticos? E, se bem-sucedida, ela não acabará criando outros problemas, de modo que, em vez da neoliberalização da vida cotidiana, teremos que enfrentar a sua burocratização? E como organizar e coordenar a produção, uma vez que a quantificação seja considerada uma carta fora do baralho?
Um projeto mais promissor para a esquerda pode ser encontrar maneiras de implantar “infraestruturas de avaliação” e retroalimentação para novas formas não-mercantis de coordenação social, desafiando assim o neoliberalismo com as próprias ferramentas que ele ajudou a produzir. Uma possibilidade aponta na direção do controverso sistema chinês de crédito social, com sua alocação de punições e recompensas por transgredir ou respeitar as normas sociais e políticas. O modo de controle excessivamente hierárquico do sistema o torna uma perspectiva desagradável, entretanto: tornar a elegibilidade das pessoas para o recebimento de serviços dependente de seu comportamento na esfera pública pode resolver problemas de coordenação social, mas a um preço alto demais. [29]
Existem, no entanto, pelo menos três outras possibilidades. A primeira, que seguindo a descrição de Hayek da concorrência, poderíamos chamar de “solidariedade como um procedimento de descoberta”, tem a ver com a detecção de novas necessidades e maneiras de satisfazê-las por meio de mecanismos não-mercantis. A segunda, que poderíamos chamar de “projetar não-mercados”, diz respeito à coordenação social em questões não relacionadas à produção e ao consumo. A terceira, que poderíamos chamar de “planejamento automatizado”, se concentra exclusivamente na coordenação na esfera econômica.
3.2.1. Solidariedade como procedimento de descoberta
Lembremos que Hayek, ao menos em suas últimas décadas, via a concorrência não apenas como a força motriz das atividades no mercado, mas também como um modo de descoberta. Por meio da concorrência, os consumidores descobririam novos sabores e os produtores desenvolveriam novas técnicas de produção. A concepção da concorrência para Hayek como um processo heurístico é impressionante; pode até mesmo ser precisa. Mas sejam quais forem os seus méritos, a competição não é o único procedimento de descoberta disponível para a humanidade. Será que outras “técnicas de ordenação dos assuntos sociais” poderiam produzir benefícios semelhantes? O planejamento central, nos termos de Hayek, estaria fora de cogitação como um modo de descoberta, já que poucos “desconhecidos que nem se sabe desconhecer” viriam à tona no curso de sua operação; na verdade, esses pareceriam se proliferar, à medida que os ajustes ao ambiente em transformação, antes ocorrendo sem atritos, se defrontariam com problemas de conhecimento e a burocracia centralizada desenvolveria seus próprios interesses sociais. Mas por que assumir que só existem dois “procedimentos de descoberta” – competição e planejamento central? Esse binarismo maniqueísta tinha uma base política no senso comum durante a Guerra Fria, replicando o antagonismo entre capitalismo e comunismo. Preso nesse quadro de referência, Hayek tinha pouco a dizer sobre o potencial de descoberta de outros arranjos sociais, além da concorrência. [30]
Que formas esses procedimentos de descoberta alternativos poderiam assumir? Considere um processo centrado na vida social e na resolução de problemas, ao invés do consumo capitalista, como na teoria de Hayek. A existência social nos apresenta uma infinidade de problemas a resolver, alguns deles altamente específicos e relevantes apenas para pequenos grupos de pessoas, outros de importância muito mais abrangente. A “infraestrutura de avaliação” e retroalimentação digital poderia ser usada para sinalizar problemas sociais e até mesmo para facilitar a deliberação em torno deles, apresentando diferentes abordagens conceituais para as questões envolvidas. O que conta como um “problema” também estaria aberto ao debate: os cidadãos poderiam convocar aliados e convencer outras pessoas das virtudes de suas próprias leituras de problemas específicos e de suas propostas de solução para esses problemas. Esse enquadramento sugere que os procedimentos democráticos baseados na deliberação poderiam ser eles próprios modos de solução de problemas e meios de coordenação social.
Pode-se imaginar o uso de infraestrutura de avaliação e retroalimentação digital para encontrar correspondências entre “localizadores de problemas”, que expressariam suas necessidades e problemas e reagiriam àqueles que fossem identificados por outras pessoas – seja explicitamente, conversando sobre eles ou os compartilhando, ou “automaticamente”, por meio de aprendizado de máquina – com “solucionadores de problemas”, equipados com tecnologias baratas, mas poderosas, e com as habilidades para operá-las. Uma vez que os dois grupos tenham encontrado correspondência (ou “dado match”) pela infraestrutura de retroalimentação, as atividades dos “solucionadores de problemas” poderiam ajudar a tornar tangíveis e explícitas as necessidades implícitas dos “localizadores de problemas”, adicionando material ao conjunto de soluções que poderiam então ser exploradas por outros “descobridores de problemas”. Supondo que isso ocorra fora da esfera comercial, não haveria barreiras, como patentes, para impedir o compartilhamento de conhecimento.
A resolução colaborativa de problemas no domínio social já ocorre até certo ponto. Um exemplo seriam os “hackathons“, que reúnem ONGs com problemas específicos e hackers bem-intencionados que podem saber como solucioná-los, mas que, não fosse isso, nunca se encontrariam. A premissa original dos hackathons – antes deles serem cooptados pelo setor de desenvolvimento imobiliário e pelo Vale do Silício – era que o altruísmo e a solidariedade deveriam impulsionar a cooperação entre “fornecedores” e “consumidores” de soluções. Em princípio, esses processos poderiam ser expandidos em uma escala muito maior, com sistemas de avaliação e circuitos de retroalimentação suficientemente rápidos e abrangentes, contando com algoritmos adequados.
Será que modos de descoberta colaborativa desse tipo necessariamente revelariam menos do que aqueles que operam por meio da concorrência Hayekiana? As atuais condições econômicas indiscutivelmente favorecem a descoberta baseada na competição ao invés de processos baseados na solidariedade, mas este não é um estado de coisas natural ou inevitável – ou o resultado da evolução, como argumentou Hayek. Em vez disso, é o resultado de intervenções políticas, informadas por uma rejeição Hayekiana de alternativas não-individualistas e altruístas. Seria uma tautologia afirmar que o neoliberalismo, que tem se esforçado para instalar a concorrência como único modo de descoberta, também favorece a descoberta por meio da concorrência. Acreditar que a competição capitalista sempre produzirá mais conhecimento do que outros procedimentos de descoberta exige que acreditemos, por exemplo, que aprendemos mais sobre o mundo quando agimos como consumidores do que quando agimos como pais, alunos ou cidadãos; e que nossas necessidades humanas estariam mais bem expressas na linguagem consumista da competição do que em quaisquer outros termos. No domínio da produção, seria preciso acreditar que o imperativo da inovação “induzido” nos produtores concorrentes pelas leis do movimento capitalistas produziria melhorias na existência social maiores do que os imperativos que impulsionam os “solucionadores de problemas” não-mercantis – considerações ambientais, talvez – que pudessem ser capazes de gerar suas próprias reduções de custos. Além disso, a competição nem sempre conduz à descoberta. O próprio Hayek compreendeu que os direitos de propriedade intelectual, historicamente um importante pilar do desenvolvimento capitalista, erguem barreiras à descoberta – embora pareçam ter se tornado uma característica permanente de seu sistema preferido. Esse não seria um problema em procedimentos de descoberta baseados na solidariedade.
3.2.2. Projetando “não-mercados”
Embora o neoliberalismo sempre favoreça mercados e preços, suas tecnologias ajudam a criar possibilidades para transcendê-los. Uma delas é indicada pelo trabalho de Alvin Roth para conceber maneiras de corresponder doadores de órgãos com destinatários potenciais, na ausência de preços: uma vez que as preferências de todas as partes buscando uma transação tenham sido expressas claramente, é possível deixar de lado o sistema de preços e encontrar outras maneiras distribuir recursos escassos. Isso sugere o segundo uso ao qual a esquerda poderia aplicar a infraestrutura de avaliação e retroalimentação digital: projetar “não-mercados”. Existem, no entanto, vários problemas com a aplicação de tais soluções em uma escala maior. Em primeiro lugar, quanto mais partes em negociação houver e quanto mais preferências elas expressarem, maior será a complexidade do processo de correspondência. Em segundo lugar, os mercados fornecem meios de coordenação social que vão muito além da simples distribuição de recursos existentes entre um número fixo de partes com preferências claramente definidas. O que fazer quando o número de participantes é desconhecido, as preferências são confusas, não há recursos prontos para distribuir e o ambiente externo é cada vez mais complexo? É aí que a “infraestrutura de avaliação e retroalimentação” pode ajudar, substituindo os mercados por instituições tão cuidadosamente projetadas quanto eles, que possam alavancar fluxos de informações para resolver problemas de complexidade – a segunda função que Hayek atribuiu à concorrência.
O legado da cibernética é relevante nesse ponto. É indicativo que Reinventando o capitalismo dedique alguns parágrafos para atacar o trabalho de Stafford Beer, o ciberneticista britânico que ajudou o governo de Salvador Allende a construir uma “infraestrutura de avaliação e retroalimentação” bem básica para a economia chilena no início dos anos 1970. A compreensão dos autores sobre o projeto de Beer parece rudimentar, e eles a usam principalmente para atacar a ideia de “empurrões” governamentais, como defendida por Cass Sunstein – uma escolha esquisita, dado que o projeto chileno não tentava moldar o comportamento individual e que Beer tenha alertado explicitamente contra o condicionamento individual por meios digitais. As soluções de Beer para os problemas de complexidade eram muito diferentes das de Hayek, embora os dois – que chegaram a se encontrar brevemente em um congresso de Cibernética no início dos anos 1960 – tenham partido de premissas semelhantes. Beer também acreditava que a complexidade estava crescendo e que as velhas maneiras de minimizá-la – decretos religiosos prescrevendo códigos estritos de comportamento individual, por exemplo – não funcionavam mais. Mas a própria vida social fornece numerosos exemplos de esforços deliberadamente construídos para reduzir a complexidade, sendo as instituições as mais óbvias. As empresas – entidades artificiais, por qualquer padrão que se utilize – realizam isso no domínio do mercado; bibliotecas, universidades, sistemas de tráfego e sistemas de medição oferecem exemplos de entidades criadas deliberadamente, capazes de lidar com a complexidade em domínios não-mercantis.
Ainda que Hayek jamais tenha oferecido uma teoria convincente sobre como julgar entre as demandas de “ordens espontâneas” concorrentes, Beer dedicou sua vida à implantação de ferramentas da Cibernética que tornassem tanto as instituições de mercado quanto as não-mercantis mais responsivas às demandas da crescente complexidade social. Isso significava construir fluxos de informação robustos no interior do sistema, bem como entre o sistema e seu ambiente, de modo que seus componentes internos pudessem passar por transformações internas convenientes para melhor adaptar o sistema como um todo às mudanças nas condições externas. [31] [31a] Beer imaginava essas “ordens espontâneas” como umas revestindo as outras, de maneira recursiva – por exemplo: uma casa dentro de um bairro dentro de uma cidade – e estruturadas por uma divisão organizacional de trabalho, com algumas partes sendo responsáveis por definir metas sistêmicas, algumas por desenvolver estratégias para alcançá-las, outras por manter o sistema. A complexidade total de uma dada “ordem espontânea” seria, portanto, uma função da relação entre essa ordem e seu ambiente externo, bem como da distribuição e execução de funções dentro dela.
De acordo com Beer, haveria duas maneiras de domar a complexidade. Na primeira, pode-se tornar mais uniforme o comportamento interno das camadas de ordens espontâneas, por meio de regras, padrões, proibições éticas e assim por diante; Beer chama isso de “atenuação de variação”. Na segunda, pode-se tentar detectar a complexidade emergente logo de início, reprojetar a estrutura organizacional subjacente para que seja capaz de lidar com ela – e em vez de padronizar as respostas dos componentes individuais, dar-lhes o máximo possível de autonomia e poder para superarem suas próprias manifestações locais de complexidade. Beer chama isso de “amplificação de variedade regulativa”. Os dois modos visam a resultados muito diferentes: o primeiro busca tornar o sistema mais coerente por meio da redução de quaisquer variações desnecessárias entre suas partes componentes, enquanto o segundo busca torná-lo mais complexo para corresponder à complexidade do ambiente externo. Como reduzir a complexidade – como determinar o nível correto de intervenção, bem como a combinação correta de “atenuação de variação” e de “amplificação de variedade regulativa” – seria, portanto, uma questão em aberto. Como Beer colocou em Projetando a liberdade (“Designing freedom”):
A forma precisa de atenuação da variação é uma questão de decisão local. O erro crítico que estamos cometendo é tomar as decisões sobre atenuação de variação no nível errado de recursão. Então é assim que a liberdade se perde, e é isso que induz à instabilidade que ameaça se tornar catastrófica. Pois o modelo do sistema como um todo simplesmente não possui a variação necessária para equilibrar os homeostatos locais. Eles, por sua vez, são privados da variação de que precisam para encontrar seus próprios pontos de estabilização. [32]
Em contraste, o modelo cibernético de sociedade de Hayek era bem simplista. A concorrência capitalista – o regulador geral do sistema – seria o meio pelo qual a sociedade comunica as mudanças nas regras e orientações normativas, que seriam então cumpridas pelas menores unidades dos sistemas, como uma forma de “atenuar a variação”. A concepção de Beer de que a sociedade seria composta de ordens recursivas, por outro lado, revela que os imperativos e prescrições impostas às “ordens espontâneas” locais pela competição capitalista – uma das camadas mais externas do sistema social total – também poderiam restringir enormemente a capacidade adaptativa e de resolução de problemas dos “homeostatos” locais. [33] Como a concorrência não é capaz de resolver todos os problemas que surgem nesses níveis mais baixos e, na verdade, limita a capacidade desses níveis de responder de maneira mais eficaz por si mesmos, a complexidade geral aumenta, induzindo à instabilidade.
Beer argumentava que os avanços na tecnologia da informação poderiam amplificar drasticamente a “variedade regulativa” ao mesmo tempo em que poderiam empurrar a “atenuação da variação” para os níveis mais baixos possíveis do sistema, onde causaria o menor dano possível. A tecnologia da informação deveria ser capaz de oferecer uma imagem mais precisa e em tempo real da complexidade externa e verificar se os planos de contingência do sistema para lidar com ela seriam adequados (Beer celebrava o “plano de auto-aborto”, onde partes do sistema liquidariam a si mesmas ao descobrir que as circunstâncias externas tivessem mudado). [34] Em segundo lugar, a tecnologia permitiria uma observação próxima e contínua das dinâmicas internas do sistema, e facilitaria o reaproveitamento de sua estrutura organizacional conforme o ambiente externo demandar. Uma vez que a complexidade externa e interna tenham sido estudadas e compreendidas, deveria ser possível encontrar um “hack” (ou um ajuste) de algum tipo. Beer certa vez usou o exemplo de uma agenda e atribuição de sala em uma escola movimentada: um problema muito complexo de coordenação social é resolvido com um simples gráfico bidimensional.
Para Beer, a alocação exata entre as duas soluções – isto é, a decisão entre restringir o comportamento das partes individuais (cidadãos ou clientes, por exemplo) ou amplificar a capacidade reguladora e a plasticidade institucional e informacional do sistema, e dos sistemas que o contenham – deveria ser determinada democraticamente. A segunda solução seria geralmente preferível, pois concederia mais autonomia aos cidadãos. Assim, Beer defendia que a infraestrutura de planejamento, computação e coordenação deveria ser gratuita e disponível para todos, de modo que as instituições individuais, encarregadas da tarefa de reduzir a complexidade nos seus próprios contextos, pudessem encontrar suas próprias soluções ótimas/ideais. Isso não implicaria em alguma visão neoliberal de “Grande Sociedade”, onde fosse esperado que os indivíduos tomassem a solução de problemas em suas próprias mãos, conforme as alternativas públicas famintas de recursos entrassem em colapso. Em vez disso, a ambição é que a democracia radical possa juntar forças com a “burocracia radical”, a fim de tirar proveito de infraestruturas avançadas de planejamento, simulação e coordenação. Esta combinação deveria, no mínimo, produzir soluções tão eficientes quanto as da “ordem espontânea” de Hayek, sem, no entanto, descarregar todos os custos de adaptação sobre os cidadãos ou erguer muitas barreiras às capacidades de resolução de problemas dos sistemas locais.
Surpreendentemente, nem todos os neoliberais discordam disso. Um dos desenvolvimentos mais notáveis na teoria e prática neoliberais da última década foi uma concessão explícita por alguns neo-Hayekianos de que a tecnologia da informação poderia fornecer métodos eficientes de coordenação social em ambientes onde os sinais de preço estejam ausentes. [35] Aqui, como no caso do projeto de mercado, a adoção neo-hayekiana de formas de coordenação social sem preços é impulsionada principalmente pelas exigências políticas para manter o neoliberalismo à tona por meio do ataque aos flancos do Estado administrativo. Se domar o Leviatã agora significa que os neoliberais devem pregar sobre as virtudes da sociedade civil descentralizada, da “economia social”, dos bens “comuns” ostromianos, ou das “ordens policêntricas” – ainda bem longe de celebrar a autonomia operária, mas alguns passos nesse caminho! – parece que vão se obrigar a isso.
Isso leva a um reposicionamento ideológico genuinamente bizarro. Alguns estudiosos inspirados em Hayek consideram politicamente vantajoso admitir a existência de outras formas de coordenação social além do sistema de preços, contanto que também possam argumentar que grupos sociais descentralizados – ONGs, instituições de caridade, igrejas – possam tirar proveito da tecnologia da informação para fazer um melhor trabalho de coordenação de auxílio em desastres do que burocracias governamentais centralizadas. No entanto, uma vez que os neoliberais admitam isso, ficam expostos em outras frentes: por que burocracias de governo descentralizadas, redesenhadas nas linhas propostas por Beer e totalmente conectadas à “infraestrutura de avaliação e retroalimentação” democrática, não poderiam fazer um trabalho no mínimo tão bom quanto, digamos, o das igrejas, se não até melhor? Uma vez que a coordenação social tenha sido liberada da pesada bagagem ideológica do sistema de preços, não há razões teóricas sólidas para assumirmos que as instituições públicas seriam sempre inferiores às privadas no gerenciamento da complexidade.
3.2.3. Planejamento descentralizado
Qual o papel que a “infraestrutura de avaliação e retroalimentação” pode desempenhar na coordenação da atividade econômica em geral? Já há algum tempo, economistas e militantes de esquerda têm tentado reabrir o Debate do Cálculo Socialista, argumentando que os avanços mais recentes na coleta e na computação de dados tornariam o trabalho do Conselho de Planejamento Central de Lange muito mais fácil. [36] Seguidores de Hayek e Mises desenvolveram uma resposta padrão a tais esforços, apontando as perdas de eficiência envolvidas na transição do mecanismo de preços para, digamos, um sistema que use os valores-trabalho como base de cálculo. Os neoliberais têm uma situação relativamente fácil em tais debates, já que a presença espectral do planejamento centralizado na proposta de sistema econômico alternativo permite que eles invoquem o problema do conhecimento de Hayek. Mas será que não existe uma maneira de repensar a posição socialista de uma forma que não envolva planejamento centralizado, e nem que rume direto para se transformar de volta no sistema de preços?
Os processos de consumo e produção mudaram bastante desde o período entre guerras, e muitas das premissas iniciais do Debate do Cálculo Socialista já não se aplicam – incluindo as supostas virtudes do planejamento central. [36b] Pelo lado do consumo, a capacidade preditiva do big data pode antecipar nossas preferências melhor do que nós mesmos; o fato da Amazon ter obtido uma patente sobre o “envio antecipatório” – que [em tese] permitiria que ela nos envie produtos antes mesmo de sabermos que os queremos – sugere que a “infraestrutura de feedback” pode prever e facilitar a satisfação de nossas necessidades de maneiras antes inimagináveis para os planejadores centrais. Essa capacidade preditiva é um resultado não do misterioso funcionamento do sistema de preços, mas dos dados mantidos pelas plataformas. De forma semelhante, no lado da produção, as impressoras 3D permitem uma fabricação barata e flexível [e potencialmente descentralizada], sem a necessidade de investimentos massivos em capital fixo.
Algumas tecnologias de fato exigem grandes fluxos de saída de capital, a Inteligência Artificial sendo um exemplo pertinente. Mas o modo atual de financiar o desenvolvimento de IA – uma dúzia de empresas gigantes nos EUA e na China gastando dezenas de bilhões de dólares no treinamento de seus sistemas para que desenvolvam capacidades idênticas de classificação de rostos e sons – não é necessariamente a maneira mais eficiente de garantir seu avanço. Com um modelo de financiamento diferente, seria possível democratizar o acesso à IA, e ao mesmo tempo extrair mais valor de cada dólar investido. O acesso gratuito e universal à manufatura aditiva e à inteligência artificial poderia facilitar a produção de produtos genuinamente inovadores com um orçamento relativamente baixo.
Dado esse novo contexto, não parece muito produtivo para a esquerda continuar defendendo o uso de computadores mais poderosos para calcular os preços dos insumos para o Conselho de Planejamento Central – ou para manter uma burocracia centralizada, com todos os problemas políticos que isso acarreta. [novamente, ver nota 36b] Por que insistir no planejamento central, quando uma alternativa mais descentralizada, automatizada e mais livre do pessoal do apparatchik poderia ser alcançada colocando para funcionar a infraestrutura de avaliação e retroalimentação digital? O esforço mais ambicioso para esboçar o aspecto de uma alternativa desse tipo – pense no “socialismo de guildas” na era do big data – foi realizado pelo economista radical estadunidense Daniel Saros, em seu rigoroso, lúcido – e injustamente negligenciado – Information technology and socialist construction: the end of capital and the transition to socialism (“Tecnologia da informação e construção socialista: o fim do capital e a transição para o socialismo”). [37] O plano de Saros apresenta algumas lacunas e omissões, e o nível de poder tecnológico disponível atualmente já é muito maior do que quando ele foi publicado (2014). Ainda assim, a visão geral do livro fornece inspiração e encorajamento para aqueles que buscam formas alternativas de coordenar a atividade econômica em grande escala. Após uma compilação exaustiva das posições tomadas no Debate do Cálculo Socialista, Saros afirma que os economistas socialistas não podiam imaginar uma forma superior e mais descentralizada de planejamento simplesmente porque a tecnologia à sua disposição era inadequada. [37b] A tecnologia que ele tem em mente, no entanto, não é do tipo utilizado para resolver equações ou para processar montanhas de números para o Conselho de Planejamento Central, e sim uma tecnologia que alimente o tipo de “infraestrutura de feedback” descrita anteriormente.
A elegante solução de Saros desagrega os vários usos do sistema de preços para a coordenação social, mantendo alguns deles e substituindo outros pela própria “infraestrutura de feedback“. No centro de seu sistema está um Catálogo Geral, uma espécie de mistura entre Amazon e Google, onde os produtores, que estariam organizados em “conselhos de trabalhadores” semelhantes a corporações/guildas – ou startups administradas pelos trabalhadores, se você preferir – listariam seus produtos e serviços em um formato que seria familiar para os usuários da App Store da Apple ou da Google Play Store. Os consumidores, munidos de um cartão de identificação digital único, recorreriam ao catálogo para registrar as suas necessidades durante o denominado “período de registro das necessidades” no início de cada ciclo de produção; eles classificariam os produtos que desejam, especificando suas quantidades para o próximo ciclo. Os consumidores ainda poderiam comprar produtos que não tivessem solicitado após o término do período de registro de necessidades, mas eles receberiam bônus maiores se suas compras não se desviassem de suas previsões iniciais. Para encorajar os consumidores a não solicitar mais do que precisam, seriam oferecidos bônus por comprar menos itens do que o consumidor médio. Os bônus, que também seriam concedidos para outras coisas – por exemplo, por permanecer no mesmo emprego por muito tempo – seriam adicionados à renda básica universal que todos os cidadãos receberiam.
No final do estágio de registro de necessidades, os produtores – cujos produtos seriam classificados no Catálogo Geral, ao estilo da Amazon, com classificações que afetariam os bônus dos trabalhadores – calculariam os números de produção esperados e registrariam suas necessidades de insumos no Catálogo. Os produtores poderiam realizar um ajuste fino de seus números de produção usando os padrões de consumo analisados pelo big data, bem como as especificações prévias das necessidades dos consumidores. Estas informações permitiriam também a socialização de eventuais carências, uma vez que seria possível calcular a porcentagem da oferta restante total do bem a que um determinado consumidor teria direito, diante das necessidades expressas por todos os outros cidadãos. Os conselhos de trabalhadores decidiriam o preço a cobrar por cada produto, mas por não serem entidades com fins lucrativos, sua remuneração não estaria atrelada às vendas ou lucros e, portanto, seu principal critério na definição do preço seria se livrar de todo o seu estoque antes que o próximo ciclo de produção se inicie. Se a demanda por eles for particularmente baixa, certos produtos poderiam ser doados gratuitamente.
Estes são apenas os princípios básicos do sistema sofisticado descrito no extraordinário trabalho de Saros. Algumas de suas características certamente ofenderiam o credo ecossocialista: os consumidores teriam permissão para expressar e realizar todos os seus desejos, por mais excessivos que sejam – embora haja incentivos embutidos, como os bônus, a fim de promover um comportamento mais comedido. Alguns críticos, como Supiot, também podem considerar a dependência do sistema de mecanismos de feedback e classificações um preço alto a se pagar, especialmente porque envolve a tão difamada quantificação. Por outro lado, o sistema de Saros pode ajudar a minimizar o poder que normalmente se acumularia na classe tecnocrática – embora Saros conceda que os administradores de sistemas e cientistas que avaliam a escassez de recursos teriam algo do papel clássico atribuído aos burocratas.
Quão realista é o sistema de Saros? Um exame de como as grandes empresas de tecnologia organizam suas plataformas revela que alguns aspectos dele já estão em operação. A Amazon, por exemplo, recompensa os clientes com preços mais baixos por registrar suas necessidades futuras esperadas e por “assinar” planos de entregas periódicas de produtos consumidos regularmente; ela também estuda cuidadosamente as pesquisas de produtos e as ofertas de outros fornecedores em seu próprio “catálogo geral” para localizar lacunas no mercado. A democratização do acesso a essa infraestrutura de informações, de modo que todos os produtores pudessem construir a partir dessas noções emergentes sobre os produtos, certamente resultaria em um sistema que seria bem menos centralizado do que o atual, onde apenas uma empresa (a Amazon) monopoliza todo o planejamento com base nesses dados. Pode-se questionar os detalhes do sistema de Saros, mas é indiscutível que não se trata de um modelo baseado no “planejamento central” em qualquer definição formal do termo. Sim, há muito projeto de mercado, bem como muita coordenação social com base em informações, ao invés de preços; mas mesmo os neo-hayekianos, agora, já admitem que esses aspectos são aceitáveis. No sistema de Saros, o mecanismo de preços retém algumas de suas funções, mas, atrelado a um ethos não-capitalista, ele não desempenha nenhum papel na definição do nível de compensação.
Todos esses três projetos – “solidariedade como descoberta”, “projetar não-mercados” e o “planejamento automatizado” – sugerem um mundo em que o crescimento da complexidade não seja aceito como um fato inalterável e onde a concorrência não seja a única maneira de lidar com ela. A tecnologia da informação, por sua vez, seria vista como um meio de descobrir e agir sobre a plasticidade dos arranjos sociais e econômicos, desfazendo pacotes – como o preço, cujas várias funções haviam estado previamente agrupadas – que até agora foram tomados como sendo fixos. Realizar progressos em qualquer uma dessas frentes pode constituir um grande avanço para a esquerda, mas nenhum desses progressos se materializará se os meios para a criação de modos alternativos de coordenação social – a “infraestrutura de avaliação e retroalimentação (feedback)” – permanecerem como propriedade exclusiva dos gigantes da tecnologia.
Se o Debate do Cálculo Socialista nos ensina algo, é que a esquerda não deve perder tempo debatendo os méritos do mecanismo de preços isoladamente de sua inserção no sistema mais amplo da concorrência capitalista, que gera conhecimentos que não são redutíveis ao preço – a reputação e assim por diante – e que produz as normas sociais gerais e os padrões de legibilidade que permitem ao sistema de preços realizar tanto com tão pouco. Ainda que seja verdade que, avaliado em seus próprios termos, o sistema de preços parece uma maravilha da coordenação social, também é verdade que, sem os mercados capitalistas, ele não existe. Portanto, faz sentido ambicionar por uma avaliação mais abrangente, que examine como a existência da concorrência capitalista – e do capitalismo em geral – afeta a coordenação social tout court [em si]. A coordenação social pode ser mediada por toda uma ecologia de mecanismos, incluindo as leis, a deliberação democrática, uma “burocracia radical” descentralizada utilizando controles de feedback, bem como o sistema de preços. Considere, por exemplo, o conhecimento não relacionado a preços que circula nas economias capitalistas, que não apenas informa o sistema de preços, mas que também dá forma à nossa avaliação da urgência das ameaças, ajudando a informar nossas respostas. Quanto mais precisas forem essas informações, maior será a probabilidade de garantirmos a coordenação social na resolução de tarefas que – como as mudanças climáticas – são cruciais para a sobrevivência da espécie.
Ainda assim, no entanto, a concorrência capitalista muitas vezes acaba contaminando esse conhecimento, tornando quase impossível uma avaliação precisa da situação. Após a virada neoliberal, a competição está se tornando cada vez mais um procedimento de não-descoberta. Considere as empresas do setor energético ou farmacêuticas que deliberadamente fabricam ignorância, financiando seletivamente acadêmicos e think tanks; ou o complexo midiático-militar-industrial, moldando a forma como o público pensa sobre a guerra mais recente; ou o sistema educacional cada vez mais privatizado, incapaz de “descobrir” o tipo de conhecimento que não gere um impacto facilmente quantificável; ou as agências de classificação de crédito, cujos modelos de negócios muitas vezes obscurecem o estado real das empresas que elas deveriam estar avaliando. Toda uma área acadêmica – sob o nome peculiar de “agnotologia” – surgiu para estudar a produção de tal ignorância manufaturada e sua utilização por empresas capitalistas. [38] O melhor resultado possível desta pesquisa seria uma recalibragem da maneira como avaliamos a vantagens comparativas de vários sistemas de coordenação social – e uma mudança de enfoque, deixando de medir apenas suas respectivas contribuições para a eficiência econômica, e passando a ponderar sua capacidade de perceber problemas sociais existenciais, em toda a sua complexidade, e de propor soluções possíveis.
O resíduo ideológico da Guerra Fria, com sua escolha binária entre planejamento central e sistema de preços, obscureceu a existência dessa ecologia mais ampla de modos de coordenação social. A promessa emancipatória da tecnologia da informação é redescobrir e enriquecer esse repertório, ao mesmo tempo em que revela os altos custos invisíveis da dependência em relação ao atual modo dominante de coordenação social – a concorrência capitalista. Diante dessa possibilidade, a agenda do status quo neoliberal é evidente. Por um lado, eles marcharão com o slogan de que “Não Há Alternativa (ao Google)”, descrevendo qualquer afastamento em relação ao modelo cartelizado do Vale do Silício – ou no mínimo, quaisquer movimentos que ousem ir além da utopia consumista de um “novo acordo sobre os dados” — como se representassem um passo a mais no caminho para a servidão. Por outro lado, eles continuarão preenchendo os espaços sociais e políticos vazios que anteriormente tinham suas próprias lógicas e modos de fazer as coisas, com a lógica capitalista “inteligente” (ou “smart”) das plataformas digitais.
A esquerda, portanto, deve se concentrar em preservar e expandir a ecologia de diferentes modos de coordenação social, ao mesmo tempo em que documenta os altos custos – inclusive sobre o próprio processo de descoberta – de se manter a descoberta exclusivamente por meio da competição. Esta missão, entretanto, será quase que impossível sem recuperar o controle sobre a “infraestrutura de avaliações e retroalimentação”. A contradição entre formas colaborativas de descoberta de conhecimento e a propriedade privada dos meios de produção digital já está se tornando aparente nos processos de “produção por pares” – há muito celebrados por acadêmicos jurídicos liberais – utilizados na produção de software livre ou em serviços como a Wikipedia. Sob o atual modelo baseado em propriedade privada do Vale do Silício, é improvável que a infraestrutura de feedback seja passível de uma transformação democrática radical. [39] A liberdade, como os neoliberais há muito entenderam, deve ser planejada; mas isso também vale para a “ordem espontânea” deles. Na ausência de tal planejamento, a espontaneidade rapidamente se transforma em adaptação a uma realidade externa que não se deve tentar consertar. Para os conservadores este pode ser um desenvolvimento aceitável – até desejável –, mas deveria ser um anátema para a esquerda.
Notas
[0] Fora todas as crises que vieram à tona com a pandemia do coronavírus, que estourou no ano seguinte à publicação do artigo. [N. de T.]
[0a] Grupo de universidades nos EUA que formam a elite acadêmica do país e que tendem a concentrar a “elite intelectual” em formação. [N. de T.]
[1] Alex Pentland, “Reality mining of mobile communications: toward a new deal on data” [Mineração da realidade das comunicações móveis: por um novo acordo sobre os dados], Global Information Technology Report, 2008–09, Genebra, 2009, p. 75–80.
[2] Viktor Mayer-Schönberger e Kenneth Cukier, “Big data: a revolution that will transform how we live, work and think” [Big data: uma revolução que vai transformar a maneira como vivemos, trabalhamos e pensamos], Nova Iorque, 2013. Não há nenhuma sugestão nessa obra de uma mudança politicamente significativa no horizonte; o principal desfecho do big data parece ali ser a reviravolta do raciocínio causal diante de correlações abundantes, mas mal compreendidas. Se os dados mostrassem que as pessoas estavam comprando mais tortas de morango durante os furacões – o arqui-exemplo da maioria dos livros sobre o assunto -, então a tarefa seria vender mais tortas de morango, e não se preocupar com os motivos para isso. Nascido em uma vila nos Alpes acima de Salzburgo, Mayer-Schönberger fundou sua primeira empresa de desenvolvimento de software em 1986, aos vinte anos, quando ainda era estudante de Direito. Depois de passagens pela Escola de Direito de Harvard e pela lSE, lecionou na Harvard’s Kennedy School, na Cingapura e em Oxford. Seu primeiro grande livro em inglês, Delete: the virtue of forgetting in the digital age [Deletar: a virtude do esquecimento na era digital], foi publicado em Princeton em 2009.
[2b] “O Digital”, numa referência direta a “O Capital” – no original, “Das Kapital”. [N. de T.]
[3] Viktor Mayer-Schönberger e Thomas Ramge, Reinventing capitalism in the age of big data [Reinventando o capitalismo na era do big data], Nova Iorque, 2018, p. 216. Deste ponto em diante, nos referimos ao livro como “rc”.
[4] G. A. Cohen, Why not socialism? [Por que não o socialismo?], Princeton, 2009, p. 57.
[5] Para a articulação mais recente desta tese, veja Leigh Phillips e Michal Rozworski, The People’s Republic of Walmart: how the world’s biggest corporations are laying the foundation for socialism [A República Popular do Walmart: como as maiores corporações globais estão estabelecendo as bases para o socialismo], Londres e Nova Iorque, 2019.
[6] A proponente desta tese de maior proeminência foi Izabella Kaminska, do Financial Times.
[7] rc, p. 5.
[8] rc, p. 12.
[9] O SPD alemão já expressou ideias semelhantes, pedindo aos gigantes tecnológicos estadunidenses que comecem a compartilhar seus dados com empresas alemãs: Andrea Nahles, “Die tech-riesen des Silicon Valleys gefährden den fairen Wettbewerb” [Gigantes de tecnologia do Vale do Silício estão ameaçando a justa concorrência], Handelsblatt, 13 de agosto de 2018. Mayer-Schönberger se recusou a envolver-se com a iniciativa austríaca, citando divergências ideológicas com o governo ÖVP-FPÖ. Pouco tempo depois que o artigo de Nahles apareceu, no entanto, ele se juntou ao recém-criado Conselho de Assessores Digitais do governo de coalizão CDU-SPD em Berlim. Enquanto isso, a ideia de um mandato de compartilhamento de dados foi adotada de forma mais ampla; veja, por exemplo, o recente artigo no Peterson Institute de Claudia Biancotti e Paolo Ciocca, “Opening internet monopolies to competition with data sharing mandates” [Abrindo os monopólios da internet à competição por meio de mandatos de compartilhamento de dados], PIIE Policy Brief, abril de 2019.
[10] rc, p. 143.
[11] Shoshana Zuboff, The age of surveillance capitalism: the fight for a human future at the new frontier of power, Nova Iorque, 2019 (Shoshana Zuboff, A era do capitalismo de vigilância: a luta por um futuro humano na nova fronteira do poder, Rio de Janeiro: Intrínseca, 2021); Albert Wenger, World after capital [O mundo após o capital], disponível em forma de código aberto via GitBook.
[12] Dan DeFrancesco, “Here’s a breakdown of how much us banks are spending on technology” [Apresentamos aqui um detalhamento de quanto os bancos estadunidenses estão gastando com tecnologia], Business Insider, 28 de março de 2019; Kim Nash, “Amazon, Alphabet and Walmart were top IT spenders in 2018” [Amazon, Alphabet e Walmart foram os que mais gastaram com TI em 2018], wsj, 17 de janeiro de 2019.
[13] Kristin Broughton, “BB&T-SunTrust tie-up brings tech budgets into focus” [O acordo entre BB&T e SunTrust coloca em destaque os orçamentos em tecnologia], wsj, 7 de fevereiro de 2019; Laura Noonan e Patrick Jenkins, “Citigroup CEO says machines could cut thousands of call centre jobs” [o CEO do Citigroup diz que as máquinas poderiam cortar milhares de empregos em call centers], Financial Times, 18 de fevereiro de 2019.
[14] Dan DeFrancesco, “A new study found JP Morgan and BofA are winning Wall Street’s technological arms race” [Um novo estudo descobriu que o JP Morgan e o BofA estão vencendo a corrida tecnológica em Wall Street], Business Insider, 28 de março de 2019.
[15] Lauren Mostowyk, “Global fintech investment rockets to a record $111.8B in 2018, driven by mega deals” [Investimento global em tecnologia financeira dispara e atinge um recorde de $111.8B em 2018, impulsionada por mega-acordos], kpmg, 13 de fevereiro de 2019. Esse valor incluiu o investimento de $17B da Blackstone na Refinitiv, um braço da Thompson Reuters.
[16] Ver também numerosas contribuições em Jamee Moudud, Cyrus Bina e Patrick Mason (eds.), Alternative theories of competition: challenges to the orthodoxy [Teorias alternativas da concorrência: desafios à ortodoxia], Abingdon e New York 2012.
[17] Esse terreno é muito bem coberto em Johanna Bockman, Markets in the name of socialism: the left-wing origins of neoliberalism [Mercados em nome do socialismo: as origens do neoliberalismo na esquerda], Stanford 2011.
[18] A melhor e mais concisa interpretação da posição austríaca sobre preços e conhecimento e suas subsequentes más interpretações por várias escolas de economia informacional permanece sendo Esteban Thomsen, Prices and knowledge: a market-process perspective [Preços e conhecimento: uma perspectiva do processo do mercado], London 1992.
[18b] Uma análise comparativa sobre o peso informacional necessário para o operação de um sistema com base no mercado e um sistema de planejamento dinâmico altamente informatizado pode ser encontrada na sessão 7 do artigo de Cockshott e Cottrell que discute as ideias de Hayek sobre mercado e informação. A conclusão dos autores, com base na teoria algorítmica da informação, é que seria possível operar um sistema ainda mais leve em relação ao fluxo de informações em circulação com base no planejamento informatizado. [N. de T.]
[18c] Aqui talvez coubesse uma reflexão sobre o que é que os mercados de fato realizam que possibilita alguma coordenação entre as atividades produtivas em um sistema voltado à produção de mercadorias (ou seja, onde os bens e serviços são criados para a troca no mercado, e não para a satisfação direta das necessidades dos produtores). Como Cockshott e Cottrell lembram na sessão 5 do artigo citado anteriormente, com base na teoria da complexidade algorítmica, Deng, X. e Huang, L. demonstraram, em 2006, que o problema do equilíbrio econômico neoclássico – do equilíbrio geral walrasiano entre todas as demandas e ofertas de todos os bens e serviços no nível ideal de máxima satisfação de todos os envolvidos (o estado de equilíbrio que os neoclássicos consideram como sendo o efeito “natural” da concorrência no mercado) – se trata na verdade de um problema que não pode ser solucionado em um tempo efetivo por nenhum sistema computacional, seja ele um sistema de planejamento de fato computadorizado, ou seja ele a “operação cega” de tentativas e erros da dinâmica do mercado. Ver Deng, X. e Huang, L., “On the complexity of market equilibria with maximum social welfare” [“Sobre a complexidade do equilíbrio de mercado com bem-estar social máximo”], Information Processing Letters 97(1), 4–11. 2006. Para Cockshott e Cottrell, como indicado por Ian Wright, o que o mercado de fato realiza é: 1) forçar a operação da lei do valor (ou seja, que no longo prazo os preços dos produtos sejam trocados em torno dos valores em mão de obra verticalmente integrados contidos nos mesmos e os desajustes entre eles sejam utilizados para atrair ou expulsar novos capitais de setores em que os preços estejam se distanciando desse “centro gravitacional”); 2) levar a um equilíbrio (estatístico) da distribuição de renda em um certo padrão bastante desigual; e 3) com base nessa distribuição, ajustar, na base da tentativa e erro, uma certa configuração de consumo dos bens e produtos aproximadamente adequada àquela distribuição de renda e facilmente alcançável a partir da configuração anterior. Ver Ian Wright, “The probabilistic approach to economic variables” [A abordagem probabilística para as variáveis econômicas] em W. Paul Cockshott, Allin F. Cottrell, Gregory J. Michaelson, Ian P. Wright e Victor M. Yakovenko, Classical Econophysics [Econofísica Clássica], 2009. Cockshott e Cottrell argumentam, no mesmo artigo citado anteriormente, que um sistema computadorizado poderia realizar a operação da lei do valor e levar a um estado de ajuste de ofertas e demandas adequado próximo de cada configuração anterior de maneira muito mais rápida que o esquema de tentativas e erros operado pelo mercado. [N. de T.]
[19] F. A. Hayek, “The meaning of competition” [O significado da concorrência] (1948), em Bruce Caldwell, (ed.), The collected works of F. A. Hayek: the market and other orders [As obras completas de F. A. Hayek: o mercado e outras ordens], vol. 15, Chicago 2014, p. 109.
[20] Essa história é discutida em maior extensão em Philip Mirowski e Edward Nik-Khah, The knowledge we have lost in information: the history of information in modern economics [O conhecimento que perdemos na informação: a história da informação na Economia moderna], Oxford 2017.
[20a] Este é um tema cuja polêmica permanece em aberto. Mesmo entre os autores austríacos posteriores a questão das continuidades e descontinuidades entre as ideias de Mises e Hayek ainda gera polêmicas intensas. Outros autores socialistas discordarão de Morozov (provavelmente considerando sua posição excessivamente generosa para com Mises e Hayek) e defenderão que os austríacos mudaram sim sua posição (ou pelo menos a ênfase que colocavam em cada argumento) conforme seus argumentos eram contra-atacados pelo lado socialista no debate. Para revisões e outras reflexões sobre os sentidos e elementos relacionados com o “debate sobre o cálculo econômico no socialismo”, a partir de variados pontos de vista socialistas, ver também “Cálculo, complexidade e planejamento: o debate do cálculo socialista, uma vez mais”, de Cockshott e Cottrell, “Como fazer um lápis: se a gente quiser, o capitalismo acaba”, de Aaron Benanav, “O cálculo econômico socialista e a luta de classes na ciência”, de Tiago Camarinha Lopes, “Planejando uma utopia ecossocialista“, de Drew Pendergrass e Troy Vettese, “Planejando o bom antropoceno“, de Leigh Phillips e Michal Rozworski, e “Plataformas para a abundância vermelha”, de Nick Dyer-Witheford (a ser publicado em breve pela Jacobin Brasil). [N. de T.]
[21] Ver, por exemplo, a explicação de Leonid Hurwicz da “argumentação do tipo Hayekiano“ em “Centralization and decentralization in economic processes” [Centralização e descentralização em processos econômicos], em Alexander Eckstein (ed.), Comparison of economic systems: theoretical and methodological approaches [Comparação de sistemas econômicos: abordagens teóricas e metodológicas], Berkeley 1971, p. 93.
[22] Ver F. A. Hayek, “The nature and history of the problem” [A natureza e a história do problema], em F. A. Hayek (ed.), Collectivist economic planning [Planejamento econômico coletivista], London 1935.
[23] Alvin Roth, Who gets what—and why: the new economics of matchmaking and market design [Quem recebe o quê – e por quê: a nova economia da correspondência e do projeto de mercado] , Nova Iorque, 2015.
[24] E. L. Glaeser, “A review essay on Alvin Roth’s Who gets what—and why” [Uma resenha de Who gets what – and why, de Alvin Roth], Journal of Economic Literature, vol. 55, no. 4, dezembro de 2017, pp. 1602–14.
[25] Alain Supiot, Governance by numbers: the making of a legal model of allegiance [Governança pelos números: a construção do modelo jurídico da finalidade], Oxford 2017. Ver também seu trabalho anterior sobre a lei como um instrumento de solidariedade: Homo juridicus: on the anthropological function of the law [Homo juridicus: sobre a função antropológica da lei], Londres e Nova Iorque, 2007.
[26] Ver Abbey Stemler, “Regulation 2.0: the marriage of new governance and lex informatica” [Regulação 2.0: o casamento entre a nova governança e a lex informatica], Vanderbilt Journal of Entertainment & Technology Law, vol. 19, no. 1, 2016, pp. 87–132; e Karen Yeung, “Algorithmic regulation: a critical interrogation” [Regulação algorítmica: uma interrogação crítica], Regulation & Governance, vol. 12, no. 4, dezembro de 2018, pp. 505–23.
[27] Os austríacos, previsivelmente, jamais aceitaram de verdade a ideia de “empurrões”, apesar do pedigree impecavelmente neoliberal da ideia. Para um comentário tipicamente austríaco sobre essa prática, ver Abigail Devereaux, “The nudge wars: a modern socialist calculation debate” [A guerra dos empurrões: um debate moderno sobre o cálculo socialista], Review of Austrian Economics, vol. 32, no. 2, junho de 2019, pp. 139–58.
[28] O caminho para a servidão, apesar da recente aclamação que tem recebido nos círculos libertários [de direita], é um livro onde Hayek faz um bom número dessas concessões à social-democracia. Isso não passou despercebido pelos mais ardorosos dos libertários, que muitas vezes repudiam Hayek como tendo um coração “social-democrata”. Uma declaração típica dessas acusações pode ser encontrada em Walter Block, “Hayek’s road to serfdom” [O caminho da servidão de Hayek], Journal of Libertarian Studies, vol. 12, no. 2, 1996, pp. 339–65.
[29] Neoliberais de convicção austríaca já compreenderam que as batalhas em torno dos sistemas de identidade e reputação – como aquele apresentado na China – viriam a constituir o novo capítulo no Debate do Cálculo Socialista. Para uma crítica embrionária ao “crédito social” a partir do paradigma Hayekiano, ver Abigail Devereaux e Linan Peng, “Give us a little social credit: to design or to discover personal ratings in the era of big data” [Nos dê um pouco de crédito social: projetar ou descobrir avaliações na era do big data], GMU Working Paper in Economics, no. 18–35, 6 de dezembro 2018. De certa forma, o sistema de “crédito social” representa um desafio diferente do planejamento central, no sentido de que fornece infraestrutura para remodelar os fundamentos normativos subjacentes, bem como as grades de inteligibilidade – e o faz em escala – sem o quê qualquer desvio para longe do sistema de preços simplesmente não funcionaria com a mesma eficácia (a experiência soviética com o planejamento central atesta isso). Até que ponto essa reorientação para longe do sistema de preços se encaixa nos planos políticos mais abrangentes do governo chinês é outra questão.
[30] A ênfase de Hayek na concorrência decorre de sua suposição de que esse seria o único impulso social compatível com os desenvolvimentos evolutivos. Sentimentos de altruísmo e solidariedade teriam tido seus usos evolutivos nas sociedades primitivas, quando vivíamos em pequenas unidades sociais, mas teriam se mostrado inadequados para uma vida em uma “ordem de mercado estendida”. A idiossincrática teoria da evolução cultural de Hayek, informada por sua descrição da “seleção grupal”, culmina assim na conclusão politicamente conveniente de que o comportamento egoísta e individualista em ambientes de mercado seria a única resposta não reacionária e favorável à evolução. Uma consequência é que quaisquer procedimentos de descoberta enraizados na solidariedade, no altruísmo ou em quaisquer outras práticas sociais não individualistas são descartados logo de início: esses representariam um retrocesso ao passado e, em qualquer caso, seriam logisticamente impossíveis na moderna ordem estendida. Sendo apenas um cientista evolucionista amador, o movimento de Hayek foi uma aposta arriscada e muitos de seus pares procuraram se distanciar de sua guinada evolutiva, especialmente em seu último trabalho, A arrogância fatal. O uso por Hayek do conceito de “seleção grupal”, entretanto, remonta a década de 1960 e não pode ser simplesmente atribuído à sua senilidade; esse uso também informa sua trilogia sobre Direito, Legislação e Liberdade, especialmente o epílogo extensivo ao último volume. Hayek and the evolution of capitalism [Hayek e a evolução do capitalismo] (Chicago 2018), de Naomi Beck, um exame abrangente de seu pensamento evolucionista, conclui de maneira condenatória que este sofre de “incoerências, falta de evidências que o suportem e desrespeito pelas teorias que o inspiraram”.
[31] Nesse ponto Beer e Hayek estavam em plena concordância. Ver as reflexões sobre qual “mudança de ambiente” pode ser necessária em F. A. Hayek, “Notes on the evolution of systems of rules of conduct” [Notas sobre sistemas de regras de conduta] [1967], em The market and other orders [O mercado e outras ordens], p. 282.
[31a] É interessante notar como essa mesma noção é utilizada na Ciência da Computação, em Análise e Desenvolvimento de Sistemas em conceitos que buscam isolar a complexidade de um sistema em componentes menores, que possam sofrer alterações em seus detalhes internos ou mesmo ser trocados sem que isso exija grandes transformações em outras áreas do sistema como um todo – ver conceitos como encapsulamento, interfaces e redução de dependência entre os componentes de um sistema. [N. de T.]
[32] Baseado nas aulas de Beer em 1973 em Massey, Designing freedom [Projetando a liberdade] (Toronto, 1974) oferece uma introdução concisa das suas ideias para o leitor geral.
[33] A elaboração de Beer sobre como camadas mais externas de um sistema— ele discute a mídia e o complexo militar-industrial — conseguem restringir o conjunto de opções e os caminhos futuros percebidos pelos atores na ordem atual é estabelecida em Beer, “The will of the people” [O desejo das pessoas], Journal of the Operational Research Society, vol. 34, no. 8, August 1983, p. 797–810. A descrição de Beer da hierarquia de ordens sociais e das restrições que elas impõem umas sobre as outras é o que diferencia seu trabalho daquele de alguém como Niklas Luhmann, que começou com premissas cibernéticas, mas extraiu conclusões muito diferentes.
[34] Stafford Beer, “The aborting corporate plan: a cybernetic account of the interface between planning and action” [O plano de aborto corporativo: uma explicação cibernética da interface entre planejamento e ação], em Erich Jantsch (ed.), Perspectives of Planning [Perspectivas sobre planejamento], Paris 1969, p. 397–422.
[35] Ver Daniel Sutter e Daniel Smith. “Coordination in disaster: nonprice learning and the allocation of resources after natural disasters” [Coordenação no desastre: aprendizado não baseado em preços e a alocação de recursos após desastres naturais], Review of Austrian Economics, vol. 30, no. 4, dezembro de 2017, pp. 469–92; Emily Chamlee-Wright e Justus Myers, “Discovery and social learning in non-priced environments: an austrian view of social network theory” [Descoberta e aprendizado social em ambientes sem preços: uma visão austríaca da teoria da rede social], Review of Austrian Economics, vol. 21, no. 2–3, janeiro de 2008; Emily Chamlee-Wright e Virgil Henry Storr, “Social economy as an extension of the austrian research programme” [Economia social como uma extensão do programa de pesquisa austríaco], em Peter J. Boettke e Christopher Coyne (eds.), The Oxford Handbook of Austrian Economics [O manual de Oxford de Economia austríaca], Oxford 2015, p. 247–71.
[36] Para alguns escritos representativos sobre essa questão, ver Allin Cottrell e W. Paul Cockshott, “Cálculo, complexidade e planejamento: de volta ao debate do cálculo socialista”, Review of Political Economy, vol. 5, no. 1, 1993, pp. 73–112; Cottrell e Cockshott, “Computers and Economic Democracy” [Computadores e democracia econômica], New Historical Project, 8 abril de 2003; Nick Dyer-Witheford, “Red plenty platforms” [Plataformas para a abundância vermelha], Culture Machine, vol. 14, 2013; Ionela Bălţătescu e Petre Prisecaru, “Computability and economic planning” [Computabilidade e planejamento econômico], Kybernetes, vol. 38, no. 7–8, 2009, p. 1399–1408; Erick Limas, “Cybersocialism: a reassessment of the socialist calculation debate” [Cibersocialismo: uma reavaliação do debate do cálculo socialista], 4 de fevereiro de 2018, available at ssrn.
[36b] Evidentemente, mesmo autores que de fato defendem um planejamento centralizado e contra os quais Morozov está polemizando, como Cockshott e Cottrell, não fazem essa defesa com um esquema completamente centralizado e burocrático em mente, nem com uma inspiração direta no modelo de planejamento burocratizado antes utilizado na URSS, mas visualizam um sistema centralizado de processamento de dados e ajuste de metas em uma operação em muitos aspectos necessariamente descentralizada – ver os argumentos dos autores nesse sentido. Talvez a razão pela qual Morozov acabe não conseguindo visualizar a proximidade de sua crítica ao modelo de direção burocrática praticado na URSS com a crítica apresentada por autores que defendem outro modelo de planejamento tenha a ver com uma desconfiança que vários autores à esquerda que entraram nesse debate continuam possuindo em relação a qualquer modelo que envolva algum aspecto centralizado, como Aaron Benanav ou Sam Gindin, entre outros. [N. de T.]
[37] Daniel Saros, Information technology and socialist construction: the end of capital and the transition to socialism [Tecnologia da informação e construção socialista], Abingdon and New York 2014.
[37b] Ironicamente, trata-se da mesma posição de Cockshott e Cottrell. [N. de T.]
[38] Para uma introdução geral, ver Robert Proctor e Londa Schiebinger (eds.), Agnotology: the making and unmaking of ignorance [Agnotologia: a construção e a desconstrução da ignorância], Stanford 2008. Colin Crouch, sem utilizar o termo explicitamente, discutiu recentemente a natureza indutora de ignorância do capitalismo moderno em The knowledge corrupters: hidden consequences of the financial takeover of public life [Os corruptores do conhecimento: consequências ocultas da tomada da vida pública pelo sistema financeiro], Cambridge 2016.
[39] Uma busca por “meios de produção por pares” no Google [em inglês] retorna apenas quatro resultados de pesquisa — um indicador preciso das preocupações políticas dos impulsionadores liberais da produção por pares.
Sobre os autores
Evgeny Morozov
é um escritor, pesquisador e intelectual americano da Bielorrússia.