UMA ENTREVISTA DE
Sa’eed HusainiNas três décadas que se seguiram à Segunda Guerra Mundial, ativistas anticoloniais tentaram quebrar as correntes do colonialismo. No entanto, os seus objetivos iam muito além da conquista da independência política ou da construção de uma nova nação. Para muitos, o objetivo era nada menos que reinventar a ordem internacional em termos legais, políticos e econômicos – para criar um mundo onde os povos dominados pudessem finalmente obter sua autodeterminação e verdadeira independência nacional.
Estadistas pós-coloniais como Kwane Nkrumah, Michael Manley e Julius Nyerere promoveram de forma bem-sucedida a consagração do direito à autodeterminação nas Nações Unidas (ONU), propuseram ambiciosos projetos de federação regional e exigiram um rebalanceamento da economia mundial que redistribuísse poder e riqueza para o Sul Global. Os nacionalistas anticoloniais, como Adom Getachev demonstra em seu novo livro “Construção mundial após o Império: Ascensão e queda da autodeterminação” (Worldmaking after Empire: The Rise and Fall of Self-Determination) , eram também internacionalistas igualitários.
O contribuidor da Jacobin, Sa’eed Husaini conversou recentemente com Getachew acerca [da dimensão] de “construção global” presente no projeto anticolonial no período pós-guerra e sobre a necessidade de derrubar as hierarquias globais que sobreviveram mesmo muito depois da queda formal do colonialismo.
SH
Você argumenta que a descolonização foi um projeto de “construção global’” que procurava transformar a ordem internacional inteira e não apenas reconfigurar as antigas colônias europeias em Estados-nações nominalmente independentes. Porque é importante para nós reconhecer as ambições de construção global do nacionalismo anticolonial?
AG
Meu argumento sobre “a construção global” é direcionado contra a visão padrão da descolonização enquanto uma expansão da sociedade internacional, que gradativamente teria incorporado colônias excluídas. Enquanto essa visão padrão enfatiza o governo estrangeiro e a exclusão da sociedade internacional, eu me baseio em uma visão do império enquanto uma hierarquia racializada e uma integração desigual. Ao recuperar esta história, eu espero mostrar que pensadores negros contribuíram com concepções sobre o internacional e [igualmente] traçar as origens dos nossos dilemas contemporâneos na era da descolonização.
Ainda que hajam limites para a construção global anticolonial, e que as transformações da ordem global desde a década de 1970 mostrem que esses projetos são de um tempo diferente, eu acredito que nós podemos aprender lições importantes com esse período. Na minha concepção, o mais importante é o compromisso em pensar juntos o nacional e o internacional [evitando] um binarismo entre nacionalismo e internacionalismo, que retornou no nosso próprio tempo.
SH
O seu livro foca nas teorias políticas e econômicas de notáveis pensadores e estadistas anticoloniais e nacionalistas, negros e africanos. Você se baseia no pensamento político de Nnamdi Azikiwe, W. E. B. Du Bois, Michael Manley, Kwame Nkrumah, Julius Nyerere, George Padmore, e Eric Williams. Trata-se, naturalmente, de figuras políticas bastante significativas. No entanto, em certo sentido, os projetos de construção global anticoloniais e nacionalistas não teriam sido uma agenda intelectual de elite, em geral liderada por homens, mais do que um movimento de massas mais amplo?
AG
O livro foca na alta política da descolonização. Ele tenta tomar espaços como a ONU e reconsiderar o que era possível dentro dos arranjos das instituições internacionais no pós-guerra. Como resultado, ele enfatiza atores políticos de elite. Contudo, movimentos de massa foram absolutamente centrais na propulsão do direito à autodeterminação e nas demandas por desenvolvimento econômico. O direito à autodeterminação, conforme assegurado pela ONU, legitimou e consagrou lutas políticas de independência bem-sucedidas. Ele não tomou o seu lugar.
Eu acredito que os estadistas que estudei possuíam uma relação ambivalente e contraditória com a política de massas. Por um lado, e especialmente na luta anticolonial, eles focaram a ação política coletiva em boicotes, greves, e em outras estratégias de desobediência civil. Ao mesmo tempo, eles tentaram limitar ou conter tais ações assim que a independência foi ganha.
Por exemplo, C. L. R. James criticou a visão de Williams por não ser o suficientemente conectada às lutas populares. A crítica de Franz Fanon à consciência nacional foi uma indiciação geral desta abdicação de mobilização política. Contra as negociações a nível estatal que Nkrumah estava envolvido, Fanon escreveu “A união africana só pode ser obtida através da confiança crescente do povo, e sob a liderança do povo, o quer dizer, em desafio aos interesses da burguesia.”
A construção global anticolonial não ocorreu apenas dentro dos espaços de instituições como a ONU. Nós devemos expandir essa ideia para incluir uma ampla gama de esforços para construir novos mundos políticos no contexto da descolonização. Por exemplo, nós podemos examinar projetos alternativos de pan-africanismo como o rastafarianismo, que gerou novas conexões entre a África e o Caribe, mas que, em geral, foram reprimidos ou rejeitados pelos atores estatais.
Nós podemos, igualmente, examinar os novos espaços de literatura e cultura visual que floresceram, e a a rede internacional que facilitou a circulação e recepção da produção estética. Frank Bowling, cuja pintura está na capa do meu livro, é um exemplo disso .Em 1965, ele ganhou o Grande Prêmio de Arte Contemporânea no Primeiro Festival Mundial de Arte Negra.
Eu creio, então, que nós temos que expandir o que conta como construção global a fim de incluir esse tipo de projeto. Isto também nos permitiria examinar melhor os modos nos quais projetos de estadistas como Nkrumah estavam sendo apropriados, contestados e refeitos nas práticas populares.
SH
Você vê o império enquanto um processo de integração internacional desigual que se tornou crescentemente racializado no fim do século XIX e início do XX. Você argumenta que esta ordem se manteve durante a fundação da Liga das Nações, apesar da consagração do direito de autodeterminação de Woodrow Wilson enquanto um dos princípios fundadores da organização. Enquanto a inclusão da Etiópia e da Libéria na Liga das Nações é em geral vista como a primeira expansão da sociedade internacional, você vê esse momento [como uma situação] em que a integração desigual foi ainda mais arraigada. Porque isso?
AG
A inclusão destes Estados é, em geral, vista como sendo a primeira rachadura no modelo exclusivista de civilização que delimitava as fronteiras da ordem internacional. O que eu faço no livro é rastrear estes processos de incorporação.
A Etiópia aparecia na Liga enquanto o lugar de uma crise humanitária antes de se tornar um membro. Nos anos de 1920 e 1930, tanto a Etiópia quanto a Libéria, foram acusadas de tolerarem a escravidão. Apesar de ambos os países possuírem diversos regimes de trabalho forçado, eu mostro como (1) esta crítica humanitária ignora o trabalho forçado em todas as colônias e (2) gerou, para estes dois países africanos, a condição de filiação penalizada e racializada na Liga das Nações.
Esta filiação foi penalizada porque a obrigação destes países com a Liga foi mais onerosa do que qualquer outro membro, e os seus direitos, mais limitados, foram condicionados à avaliação acerca deles terem, de fato, cumprido as suas obrigações. Foi racializada porque o fracasso das suas reformas domésticas foi crescentemente vinculado a sua negritude. De novo e de novo, a Liga brincou com a ideia de revogar a sua filiação e colocar ambos os estados no sistema de Mandado da Sociedade das Nações. Por volta de 1930, o Haiti – o primeiro estado negro – estava sob ocupação americana e os Estados Unidos estavam considerando uma missão militar na Libéria, a qual a Liga não tinha nenhuma intenção de denunciar. A filiação da Etiópia já era precária quando a Itália estava preparando a sua invasão. A ironia, para mim, é que o momento de inclusão, na verdade, gerou a rejeição e a negação da soberania negra.
SH
Como os nacionalistas anticoloniais conseguiram a garantia do direito à autodeterminação nas Nações Unidas e porque você é cuidadosa na concepção desse momento enquanto a inevitável universalização do regime Westfaliano de soberania?
AG
O direito a autodeterminação não estava em documentos chave do pós-guerra, como a Carta da ONU e a Declaração de Direitos Humanos das Nações Unidas. Ele foi introduzido nos anos de 1950 por estados pós-coloniais na medida em que eles procuraram influenciar os tratados vinculativos sobre direitos humanos que seriam ratificados nos anos sessenta. Este direito também seria articulado na histórica Declaração sobre a Concessão da Independência aos Países e Povos Coloniais de 1960. Eu argumento que este foi um momento divisor de águas na articulação de uma concepção universal de soberania e igualdade. Nós devemos ver isto enquanto o ápice de um esforço de estados periféricos mais do que a simples expansão de um ideal europeu. Também é importante notar que a equação do tratado de Westfália de 1648 com um regime de soberania [igualitária] apenas ocorreu no período do pós-guerra. Westfália tinha um significado antes deste momento. Mais do de projetar a ideia de soberania [igualitária] naquele momento, eu quero propor que nós podemos ler isto como o produto de lutas anti-imperiais sobre o direito universal à autodeterminação.
SH
Com o direito à autodeterminação assegurado nas Nações Unidas, nacionalistas anticoloniais se voltaram para projetos de federações regionais. Kwame Nkrumah advogava por uma “União dos Estados Africanos”, federal e supranacional, enquanto Eric Williams defendia uma federação regional das Índias Ocidentais. O que levou estes estadistas a procurarem projetos de federação regional?
AG
O primeiro problema que Nkrumah e Williams procuraram responder foi a lacuna entre a soberania de jure e a independência material. Ambos se preocuparam com o fato de que os estados pós-coloniais permaneceram muito pequenos e economicamente dependentes dos mercados globais para garantirem uma independência material. A sua estratégia envolvia integração regional através da federalização. A ideia é que, organizados em unidades federativas, estados pós-coloniais seriam mais suscetíveis de escapar da condição de dependência econômica, direcionando suas relações políticas e econômicas para a região antes do que para a ordem hierárquica internacional. Tanto Nkrumah quanto Williams imaginaram uma federação altamente centralizada que organizaria o desenvolvimento e a redistribuição em uma escala regional. Enquanto o direito à autodeterminação foi um projeto político e a Nova Ordem Econômica Internacional (NOEI, liderada por Michael Manley e Julius Nyerre) foi principalmente econômica, as federações casaram estes dois [aspectos]. Consistiam em um esforço de utilizar as instituições políticas para superar o dilema econômico. Eles também eram interessantes porque, enquanto o NOEI procurava reconfigurar o espaço internacional (através da ONU), as federações procuravam se reportar ao internacional através de uma saída organizada regionalmente.
SH
Você argumenta que a Nova Ordem Econômica Internacional procurava construir um “mundo de bem estar” enquadrando estados pós-coloniais enquanto a classe trabalhadora internacional que cria a riqueza mundial e, assim, merece a redistribuição global. Você poderia falar acerca deste ambicioso projeto de construção global? E, dado o quanto a NOEI atacou o coração da ordem internacional pós-guerra e desafiou os interesses das classes dominantes dos países ricos, se ela estava destinada a fracassar?
AG
Apesar da NOEI ter sido reconhecida na ONU durante os anos de 1970, o termo foi cunhado nos anos de 1960 e os contornos gerais da visão já estavam sendo desenvolvidos no seio da Conferência de Comércio e Desenvolvimento da ONU. O que encorajou os estados pós-coloniais no início dos anos de 1970 foram as ações da OPEP, cujo embargo ofereceu um modelo para a forma na qual os estados pós-coloniais poderiam exercer uma espécie de ação de greve.
Uma das cosias mais importantes sobre a NOEI é que ela oferecia um desafio real ao mundo centrado nos Estados Unidos, Os atores do Atlântico Norte se sentiram obrigados a responder apaziguando, acomodando ou diretamente se opondo às suas demandas. Enquanto era improvável que todas as demandas fossem atendidas, eu creio que o destino da NOEI não estava decidido desde o início, e isso é uma razão importante para resgatar este momento. Para além disso, eu creio que a NOEI foi um momento importante na transformação da linguagem de ajuda e caridade em direção à reivindicações de obrigações políticas. Foi este o poder do argumento sobre a divisão internacional do trabalho e da analogia com o estado de bem estar social doméstico. Eu creio que vemos hoje um reenquadramento similar na discussão contemporânea sobre reparações, especialmente no Caribe.
SH
Da sua perspectiva, os projetos contemporâneos organizados sob a rubrica da “descolonização” (incluindo clamores para “descolonizar” a produção de conhecimento sobre a África no seio da academia ocidental) perderam a ambição de construção global? E em um momento repleto de desafios globais – seja a crise do COVID-19 ou a crise climática – como deveríamos pensar sobre a persistência da hierarquia internacional e das tentativas históricas de estabelecer uma ordem global igualitária?
AG
Uma das características mais importantes da construção global anticolonial foi a descolonização da produção de conhecimento. Depois da descolonização, a educação superior foi expandida e muitas vezes perdeu a sua conexão direta (e subordinação) com as universidades da sua antiga metrópole. Nkrumah, por exemplo, inaugurou o Instituto de Estudos Africanos da Universidade de Gana (antigo University College da Costa do Ouro, sob os auspícios da Universidade de Londres) que tinha como seu objetivo o estudo da África de forma afrocentrada. Ao convidar. W.E.B Du Bois para inaugurar sua antiga ambição de uma Enciclopédia Africana em Gana, Nkrumah também sustentou o engajamento com a Diáspora enquanto parte dos estudos africanos. Esforços como estes – desenvolver conhecimento para um mundo descolonizado – foram replicados no Grupo Novo Mundo na Universidade das Índias Ocidentais em Mona, Jamaica; no Conselho para o Desenvolvimento da Pesquisa em Ciências Sociais na África, em Dakar, onde Samir Amin foi o primeiro diretor; e na Escola Dar es Salaam, onde Walter Rodney, passou algum tempo. Eu creio que os esforços contemporâneos de descolonizar a universidade podem aprender com estes primeiros esforços. Talvez, a lição mais importante é que estes projetos estavam ligados à transformação social nos estados recém independentes.
Eles estavam menos preocupados em criticar e superar o eurocentrismo e, ao invés disso, pensavam o mundo através do ponto de vista da África e do Caribe. Eles estavam interessados na especificidade dos seus contextos para criar novos tipos de ligações com outros lugares no Sul Global. Um das grandes tragédias da ascensão da globalização neoliberal na década de 70 é o modo como ela solapou esses esforços ao erodir o financiamento público da educação superior. A COVID-19, assim como outras crises, revelam o caráter profundamente desigual e hierárquico da nossa ordem internacional. Tratar da história do império que produziu esta condição e dos esforços para superar esta hierarquia desnaturaliza a atual estrutura e nos dá modelos de internacionalismo. A crise ilustra de forma aguda a necessidade da cooperação internacional e do desenvolvimento de mecanismos para coordenar a resposta e a recuperação. Eu acho que podemos também aprender a pensar sobre internacionalismo em diferentes escalas, incluindo a sobreposição de configurações regionais. É mais difícil descobrir onde as energias políticas para um novo modelo de internacionalismo irão emergir e em quais zonas internacionais elas devem ser canalizadas A minha história da descolonização foi contada através dos atores estatais e centrada na Assembleia Geral das Nações Unidas. As lutas contemporâneas dificilmente reproduzirão esta forma.
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